"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

terça-feira, 13 de setembro de 2011

UM OUTRO OLHAR

Artigo escrito para conclusão da disciplina de Ontologia e Fenomenologia do Mestrado em Filosofia da UFSC.

Ismael Ferreira

Apesar de minha leitura inicial de Merleau-ponty, ouso fazer alguns apontamentos que os julgo importante. Sigo a proposta apresentada pelo professor Marcos Müller, escrevendo um texto livre e desprovido de qualquer “intencionalidade” acadêmico-científica (refiro-me ao rigor técnico). Ao contrário, ouso tomar uma parte do texto de Visível e Invisível como significante, sem descartar que não vejo o texto unicamente com o meu olhar, nem o descontextualizo, mas observo com olhares outros que, em alguma medida, também são meus. Trato das conversas com colegas sobre as aulas no decorrer do curso, as próprias aulas e as leituras realizadas para a disciplina.
Almejo refletir sobre um outro olhar que retorna como sendo o olhar sobre o vidente e, nesse sentido, segundo Lacan, a pulsão freudiana como tal outro olhar. Para tanto, cabe compreender em Merleau-ponty, na medida em que, de alguma forma, se confirma a reflexão de Lacan a cerca da existência da pulsão na filosofia merleau-pontyana, as hipóteses levantadas no curso, resultado de todas as discussões que nos cercaram durante este semestre. Lembro que estou arriscando olhares, tão somente arriscando.
Para Sartre, a consciência espontânea, por sua intencionalidade, que em sua transcendência encontra os objetos, cujos quais estabelece relações, percebe que o outro é também objeto até que o limite do encontro entre o olhar do vidente e o olhar de um outro vidente, que deixa de ser objeto por sua vidência, se encontram, denunciando a existência de um outro olhar, e de um outro vidente. O olhar de um vidente denuncia aspirações que não lhe pertence e, da mesma forma, o outro vidente, que até antes do cruzamento do olhar era objeto, também percebe aspirações que não lhe pertence. Enquanto Merleau-ponty, evidencia o olhar que não é do outro, mas um outro olhar de mim mesmo que retorna estranhamente. Essa compreensão que faz Lacan remeter-se a existência da pulsão freudiana em Merleau-ponty, diferenciando-o significativamente de Sartre. Não no sentido de compreender o olhar do outro que me arrebata, mas de vislumbrar um outro olhar de mim mesmo que me desestabiliza. E sobre esse outro olhar  que retorna é que segue essa tímida reflexão.
O visível é tudo aquilo que o vidente é capaz de apalpar pelo olhar, dentro do seu campo fenomenológico. Porém, Merleau-ponty entende que os objetos existem independente de um eu perceptivo. O meu corpo está no mundo e não representa por um eu a priori o mundo. Nesse sentido, um certo panteísmo merleau-pontyano pode ser constatado. Assim, o invisível, por sua vez, da seguimento ao visível. Conforme Merleau-ponty, a compreensão mais evidente do invisível está, a meu ver, na reflexão que ele empresta de Proust: “Ninguém foi mais longe que Proust ao fixar as relações entre o visível e o invisível na descrição de uma idéia que não é o contrario do sensível, mas que é o seu dúplice e sua profundidade” (Merleau-ponty, p. 144). Nesse sentido, o invisível ganha conotação que não pode estar relacionada com qualquer idealização, pois não está na cisão do sensível, mas ao contrário, no seu aprofundamento. Porém, para além do Visível e Invisível, encontro na página 135 um texto que pretendo discutir. Um único parágrafo que inicia na página citada e se estende até a página seguinte (136).
O texto inicia refletindo a relação do vidente com o visível, supondo uma certa estranheza na aderência do vidente e do visível. Essa estranha aderência ocorre quando algo visível volta-se sobre o todo visível, ou é envolvido por ele, ou ainda, por intercambio dele torna-se uma visibilidade em si. Essa visibilidade que não pertence nem ao corpo nem ao mundo é como um espelho em frente de outro espelho, produzindo imagens que se estendem ao infinito e que não podem ser se não replicas uma da outra.

Cabe perguntar o que encontramos de fato com essa estranha aderência do vidente e do visível. Há visão, tato, quando certo visível, certo tangível se volta sobre todo o visível, todo o tangível de que faz parte, ou quando de repente se encontra por ele envolvido, ou quando entre ele e eles, e por seu intercâmbio, se forma uma Visibilidade, uma Tangibilidade em si, que propriamente não pertence nem ao corpo como fato nem ao mundo como fato – tal como dois espelhos postos um diante do outro criam duas séries indefinidas de imagens encaixadas, que verdadeiramente não pertencem a nenhuma das duas superfícies, já que cada uma é apenas réplica da outra, constituindo ambas, portanto, um par mais real do que cada uma delas. (Merleau-ponty, p. 135)

Nesse sentido, pode-se dizer que a algo de estranho na observação, como se o vidente, em algum momento perdesse, ou ainda, se perdesse no seu ofício de olhar, não inteiramente, pois caso assim fosse, ou vidente ou visível deixariam de existir. Há algo que escapa a visão, que não pertence nem ao corpo, nem ao mundo. O exemplo de Merleau-ponty para discutir esse impasse entre o vidente e o visível está numa metáfora apropriada: dois espelhos de frente um para o outro refletindo imagens indefinidas, que são réplicas uma da outra. Portanto, não se sabe de um inicio, pois são copias das imagens refletidas e não da superfície. Um espelho na frente de outro espelho reflete sua própria imagem, assim, conforme Merleau-pont, o vidente vê a si mesmo por estar preso no que vê, no espelho, ou melhor, nas coisas vistas. E é exatamente estar preso nas coisas que viabiliza o sentir das coisas, o ser visto por elas. E é por essa visão que retorna que há viabilidade de sentir o sofrimento das coisas. Dessa forma, conclui dizendo que os pintores, muitos deles, sentem-se observados pelas coisas.
Existe, segundo Merleau-ponty, um certo narcisismo no olhar que, conforme já vimos, possibilita o sofrer pelas coisas. Mas há um segundo sentido para o narcisismo, mais profundo, que é não ver de fora, mas ser visto de dentro, existir nas coisas, migrar para elas. Assim, vidente e visível se mutuam de forma que não mais se saiba quem vê e quem é visto. Discute-se nessa reflexão compreender que fenômeno pode ser este que emerge sem origem, que não se sabe de onde vem. Na medida em que Merleau-ponty avança nessa reflexão, Lacan percebe maior possibilidade de relação com a pulsão freudiana.
Percebo que há um vazio no fantasma merleau-pontyano, uma falta, algo a preencher, que viabiliza uma busca infinita a partir de significantes. Tal qual as imagens refletidas no espelho, que produzem cópias e cópias, tendendo ao infinito. Portanto, Merleau-ponty caminha sobre um chão que o engole e o mistura as substâncias do terreno sobre o qual caminha. E desse envolvimento vislumbra sua filosofia.
O texto que aqui será exposto, penso ser definitivo para a discussão proposta, apesar de não conseguir encontrar o local exato da reflexão da qual Lacan parte.

(...) É a essa Visibilidade, a essa generalidade do Sensível em si, a esse anonimato do Eu-mesmo que a pouco chamávamos carne, e sabemos que não há nome na filosofia tradicional para designá-lo. A carne não é matéria, no sentido de corpúsculos de ser que se adicionariam ou se continuariam para formar os seres. O visível (as coisas como meu corpo) também não é não sei que material “psíquico” que seria, só Deus sabe como, levado ao ser por coisas que existem como fato e agem sobre o meu corpo de fato. De modo geral, ele não é fato nem soma de fatos “materiais” ou “espirituais”. Não é, tampouco, representação para um espírito, um espírito não poderia ser captado por suas representações, recusaria essa inserção no visível que é essencial para o vidente. A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso para designá-la o velho termo elemento, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa em geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um elemento do Ser (...) (Merleau-ponty, p. 135,136)

 Aqui evidencia-se uma percepção de Merleau-ponty que se torna apropriada para ocasião, a existência de um Eu-mesmo anônimo. O que também foi chamado de carne. O que vem a ser a carne? Ou ainda o que vem a ser um Eu-mesmo anônimo? Um Eu que me é anônimo, anônimo a mim mesmo? Uma carne que não é matéria de nenhuma natureza, nem material e nem espiritual? Segundo Merleau-ponty a carne é um elemento, um elemento do ser. Nos atentemos as impossibilidades da carne: não é espiritual, nem material, nem uma substância. É um elemento, mas de que material psíquico é composto? Paira uma estranheza, uma indefinição. O que poderia defini-la de forma mais esclarecedora seria a comparação com os lábios que, em contato, deixam pedaços de carne quando se tocam, uma parte noutra. Assim, poderia ser entendido a carne e o mundo.
Poderia estar na carne a ligação da filosofia merleau-pontyana com a pulsão freudiana? Penso que somente nela poderia existir essa possibilidade. Essa indefinição poderia, em alguma medida, ser associada ao inconsciente? Penso encontrar nessa impossibilidade e indefinição a única possibilidade de interpretação a cerca da pulsão como vazio e, nesse sentido, o Eu-mesmo anônimo como passividade. Mas ainda arrisco palavras ao vento.
Conforme Merleau-ponty, a arte pode nos conduzir à estranheza. Assim, recorro à poesia de Chico Buarque como expressão desse olhar que, em alguma medida, não se sabe qual, não está no mundo nem no vidente, não se sabe se o vidente observa ou é observado. Tal poesia especula e questiona a indefinição de algo que existe, que se percebe entre as coisas, nas coisas e mesmo no vidente, mas não se sabe o que. Uma estranheza inquietante, desconfortante, impossível de ser impedida de existir. Algo que escapa todas as formas de controle, inclusive da soberania da razão.
Particularmente, percebo tal desconforto ao ouvir a música. Sinto uma sensação de que há algo que não se explica. Talvez seja essa a razão da busca de um filósofo que pensa poder atingir a verdade. Não diferente deste, um artista que, por meio da arte, tenta dar sentido a este inexplicável. Algo que na Clínica Lacaniana talvez possa ser conhecido como objeto pequeno “a”.

O Que Será
Chico Buarque

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam  nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido
O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo


Referências

MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CHICO BUARQUE. O Que Será. Álbum Perfil. Manaus: Globo, 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário