"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Fé e a Verdade

Ismael Ferreira

Artigo publicado no Anexo Ideias do Jornal A Notícia em 07 de Setembro de 2008.




A tradição judaico-cristã escrita se constitui de uma infinidade de livros datados desde um período anterior a 1500 a.C., acredita-se que alguns acontecimentos relatados chegam a uma data próxima de 10.000 a.C., conforme a tradição escrita constitutiva das religiões: judaísmo e cristianismo. Esta tradição se constrói, primeiramente, numa transmissão oral, de geração para geração, posteriormente, numa tradição escrita. Os livros do A.T. (Antigo Testamento). foram preservados pelos escribas, que tinham como missão transcrever os textos sagrados para que não se perdessem diante da instabilidade nômade dos judeus. Moisés, segundo as tradições religiosas mais antigas, foi o autor dos cinco primeiros livros, chamados pelos judeus de Torá e pelos cristãos de Pentateuco. Compõe a lei judaica. Não podemos afirmar que Moisés foi o autor de todos os textos desses livros, mas a tradição judaico-cristã da a ele a autoria dos mesmos. Durante esse período inicial da escrita até cerca de 367 d.C., data da canonização do N.T. (Novo Testamento), a tradição religiosa judaico-cristã, no processo histórico da construção de sua cultura, elaborou uma quantidade significativa de livros, documentos e textos, que se tornaram a fonte inspiradora dessa religiosidade. O conjunto dos textos que servem de embasamento para duas das principais religiões do mundo: cristianismo, judaísmo, como também suas derivações; e que influenciaram significativamente o ocidente, está reunido e organizado num livro que chamamos de Bíblia.
O termo vem do Grego bibloV que significa livro, enquanto seu plural biblia significa um conjunto ou coletânea de livros, termo utilizado para se referir ao conjunto de livros do A.T e do N.T. A Bíblia foi dividida em Antigo e Novo Testamento, sendo que o A.T. é composto por 39 livros na versão protestante, tendo 7 livros a mais na versão católica. O N.T. se equivale nas duas versões com 27 livros. A delimitação da quantidade de livros que faz parte da Bíblia vem de uma seleção feita com finalidade de definir alguns dentre os vários livros que circulavam livremente no momento da estruturação do pensamento judaico-cristão.
A escolha dos livros oficiais foi chamada de canonizar. A palavra, cuja raiz cânon significa padrão, vem do grego kanon que significa cana ou junco, usado como vara para medir. Assim, a canonização nos remete a idéia de medida exata. Dessa forma, afirmam os cristãos, a Bíblia tem o conjunto de livros adotados como certos na tradição religiosa judaico-cristã, embora o judaísmo use apenas o A.T., enquanto o cristianismo usa o A.T. e N.T.
Em um período anterior a canonização existia uma quantidade significativa de cópias dos vários textos que hoje fazem parte do conjunto oficial, porém, circulava livremente uma outra quantidade de livros que hoje são considerados apócrifos.


Cuidado para não perder a tradição

A história dos judeus foi marcada por uma forte influência de outras culturas, desde a saída do Egito até o domínio dos judeus pelos romanos. A Bíblia relata a história de alguns dos lideres judeus que lutaram para conservar sua tradições. A história dos judeus narrada pela Bíblia ou por Flávio Josefo (historiador judeu), mostra diversas situações em que os judeus são influenciados por outras culturas. Ao descer do Monte Sinai, após ter recebido o decálogo, Moisés se depara com a idolatria do povo cultuando um bezerro de ouro. Durante o Excedo os judeus curvaram-se e deixaram-se influenciar por outras culturas como: egípcia, midianita, persa, babilônica, grega, etc. Demonstrando uma forte tendência ao politeísmo, que na medida do possível era combatida por alguns lideres religiosos fiéis ao monoteísmo, porém, o monoteísmo não era hegemônico entre os judeus. No período monárquico ocorreu o maior abandono da fé judaica, pois a influência vinha dos reis que aderiam as práticas litúrgicas de outros povos. O cativo babilônico só não fez com que os judeus perdessem sua identidade cultural por causa do surgimento das Sinagogas. A helenização sofrida por todo o mundo antigo sobre o controle de Alexandre Magno também influenciou a cultura e religião judaica, como por exemplo, a primeira tradução do A.T. para a língua grega feita por aproximadamente 70 judeus, que foi chamada de Septuaginta.  Sem contar o fato de o povo judeu ter sido espalhado por todo o mundo. E por fim as influências do império Romano.
Todos esses acontecimentos fizeram com que o povo judeu produzisse literatura religiosa influenciada por outras culturas e religiões. Assim, para que a cultura e religião judaica não se perdessem, fez-se necessário dizer quais livros mantinham a essência religiosa judaica, por isso, houve a necessidade da canonização, segundo teólogos e rabinos.
A escolha dos livros canônicos do A.T. ocorreu em 70 d.C., época em que Jerusalém e o templo foram destruídos e o povo disperso. A canonização iria fazer com que os judeus continuassem a ser um povo unido: “um povo de um livro só”. Bloquearia os diversos pensamentos e literaturas contrárias ao pensamento hegemônico que circulava e influenciava o povo. Segundo McDowell, o Rabino Yohanan bem Zakkai, um dos maiores rabinos dessa época foi o organizador do Concílio de Jâmnia, que proporcionou uma série de debates para que a canonização do A.T. fosse concluída. Os livros considerados apócrifos pelos judeus também foram considerados pelos protestantes e católicos, porém, os católicos reconheceram alguns desses livros como canônicos em 1546 d.C., no Concílio de Trento, por conta de um movimento intitulado Contra Reforma.        
Os textos do N.T. existentes foram escritos em grego. Não são os originais, são traduções e cópias dos originais, que provavelmente foram escritos em Aramaico. Alexandre Magno desenvolveu uma modalidade da língua grega que foi chamada koine, que significa comum, uma espécie de grego utilizado para ensinar a massa leiga. Essa forma de grego foi utilizada para escrever o N.T. Assim, a divulgação tornou-se mais fácil, pois os povos conquistados por Alexandre eram forçados a aprender a língua grega.
O N.T. teve sua canonização em 367 d.C. Antes desse período existiam vários livros e textos cristãos circulando sem significativos problemas para o cristianismo, porém, em um determinado período da história cristã ocorreu a “necessidade” de escolher quais dos livros se tornariam o referencial do pensamento cristão. Dentre as justificativas para a canonização, o teólogo McDowell destaca: “1. O surgimento de um herege chamado Marcião (cerca de 140 d.C.) que desenvolveu seu próprio cânon e começou a divulgá-lo. A igreja precisava contrabalançar essa influência decidindo qual era o verdadeiro cânon do N.T.; 2. Igrejas orientais começaram a empregar nos cultos livros que eram claramente adulterados; 3. O edito do Imperador Romano Diocleciano (367 d. C.) determinando a destruição dos livros sagrados dos cristãos.”
Atanásio de Alexandria foi quem apresentou pela primeira vez o conjunto de livros que hoje compõe o N.T., porém, foram os pensadores católicos Santo Agostinho e São Jerônimo que definiram a canonização. A oficialização do cânon do N.T. ocorreu em 393 d.C. no Concílio de Hipona. Hoje tanto os católicos como os protestantes consideram os 27 livros como canônicos. Os encontrados posteriormente por arqueólogos como: Evangelho Segundo São Tomé, Evangelho Segundo Judas, Evangelho Segundo Maria Madalena e outros nunca foram aceitos por protestantes e católicos, mas são objetos de investigação de historiadores, arqueólogos, teólogos...

Escolha baseada em momento histórico

As discussões teológicas pairam sobre a teoria da inerrância bíblica, pois sendo a Bíblia considerada pela fé cristã como divinamente inspirada, exclui a possibilidade de conter erros, seja na formação, organização ou conteúdo. O teólogo protestante Thiessen comenta sobre a teoria da inspiração divina: “Creiamos, portanto, confiantemente, que todas as outras dificuldades podem ser resolvidas também, e aceitemos a Bíblia como a Palavra de Deus, verbalmente inspirada”. Depois de discutir o assunto no segundo capítulo do seu livro Palestras em Teologia Sistemática, compreende que a inspiração divina só pode ser possível mediante a fé. Hodge afirma: “Quando nos referimos a Bíblia como de autoridade divina, nos referimos a ela como um volume e reconhecemos todos os escritos que ela contém como dados pela inspiração do Espírito”. Segundo Hodge o fato de a Bíblia ser considerada inspirada por Deus, torna-se infalível: “A infalibilidade e a autoridade divina das Escrituras se deve ao fato de ser a Palavra de Deus (...). McDowell, depois de explanar exaustivamente as questões relacionadas a Bíblia comentou: “O que foi dito acima não prova que a Bíblia é inspirada por Deus, mas para mim prova que é única”. Seus argumentos favorecem a Bíblia como documento, sua autenticidade e singularidade, porém, não discute questões relacionadas a fé. O problema não é ver autenticidade nos textos bíblicos, e sim em não ver autenticidade nos textos que expressam parte da mesma cultura, considerando-os apócrifos. Apócrifo deve significar: o que não foi adotado como prática de determinada fé, porém isso não torna o livro menos importante. Não devemos atribuir aos livros considerados apócrifos a idéia de serem falsos, pois, cientificamente não encontraremos nenhuma diferença entre os ditos apócrifos e os canônicos.
Quando a discussão fica no campo da inspiração divina, torna-se inadequada qualquer intervenção, pois estaremos discutindo a fé, e a fé se coloca a favor da inspiração, sobre a lógica. Acabando os argumentos a fé é posta como resposta favorável à inspiração divina. Nosso estudo não busca questionar os elementos da fé que são utilizados para fortalecer a idéia de que alguns livros são inspirados, infalíveis e fidedignos, enquanto outros são considerados apócrifos, falsos, não atribuindo a eles valor algum. Compreendemos, portanto, que a canonização respeitou questões políticas, sociais e culturais, pois trata-se da manutenção da hegemonia cultural, política e social. Assim, tentamos provar o valor dos textos não canonizados, que provavelmente expressam o ponto de vista cultural de uma minoria. Alguns textos bíblicos são utilizados para reforçar a teoria da inspiração, inerrância e infalibilidade dos livros canonizados: “Toda a escritura é divinamente inspirada por Deus (...) (Paulo, II Timótio 3:19); (...) sabendo, primeiramente, isto, que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; pois nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo”(Pedro, II Pedro 1: 20,21); (...) ninguém pode abolir a Escritura (...) (Jesus, Evangelho de João 10:35). Os textos são utilizados para demonstrar que os livros canonizados são inspirados por Deus. Porém, a questão levantada é como os textos bíblicos podem reforçar a idéia da inerrância ou inspiração se os mesmos foram escritos antes da canonização, assim, para quais livros essas afirmações são direcionadas, visto que não existia uma oficialização dos livros? Dessa forma, não sabemos sobre quais livros os autores estavam se referindo. Assim, nem mesmo as citações da Bíblia servem como defesa da inerrância ou inspiração divina dos livros canonizados, pois a canonização foi posterior as falas expostas acima. Sendo impossível de sabermos sobre quais livros essas afirmações são direcionadas, a menos que novas descobertas arqueológicas esclareçam estas questões.
Outra questão que merece destaque é a citação que Judas faz sobre o livro de Henoc: “É também contra esses que profetizou Henoc, o sétimo depois de Adão: Eis que vem o Senhor com seus santos exércitos exercer o julgamento universal e convencer todos os ímpios de todas as suas impiedades criminosas e de todas as palavras insolentes que os pecadores ímpios proferiram contra ele” (Judas v 14, 15).
O próprio escritor de um livro canonizado utiliza parte de um livro apócrifo com a finalidade de exortar. Se Judas foi inspirado por Deus para escrever sua epístola, sua citação do livro de Henoc não pode ser considerada outra coisa senão a manifestação de que o livro de Henoc também é inspirado. Os teólogos posteriores não poderiam desconsiderar tal citação e excluir este livro, pois, dessa forma, o poder de julgar estava nas mãos de quem escolheu os livros e não de quem escreveu.
Por fim, a reflexão que nos propomos a fazer é sobre a dogmatização doutrinária que exclui e condena culturas e religiosidades não por questões como autenticidade, verdade, correto, mas por questões ideológicas. Pois a única razão para construir determinada religiosidade, sendo sustentada por certos livros é o momento histórico, as crenças e, em última análise, os sujeitos constituídos e produzidos por um meio que evidencia um padrão. Assim, podemos dizer que a canonização é o resultado subjetivo de um momento histórico.
Podemos concluir que a canonização foi importante para não se perder a cultura judaico-cristã, porém respeitou os sujeitos constituídos em suas épocas. No entanto, a rigidez da escolha nos fez refletir sobre as possíveis perdas culturais da exclusão dos livros não canônicos, ou considerados apócrifos. É de fato importante salientar a necessidade da canonização para que não houvesse maiores perdas na essência religiosa dessas tradições, porém, quando falamos em apócrifos, colocamos um ponto de interrogação na canonização, pois, a canonização conservou a religiosidade que, não se perdeu, mas se enrijeceu e se dogmatizou, de tal forma, que tudo que não era canônico era destruído, restando poucos livros e textos, que de alguma forma fazem parte da mesma cultura e tradição religiosa.  Assim, podemos concluir que a religiosidade judaico-cristã não pode ser considerada tão sistemática e doutrinaria a ponto de não haver divergências, pois a totalidade dessa tradição vai além do que foi adotado como certo, sendo que os critérios adotados para escolha, por mais romantizados que pudessem ter sido e que devem ser respeitados, tiveram suas influências sociais, políticas, respeitando as mudanças, transformações e conceitos culturais da época.
A diversidade na tradição religiosa, tanto judaica, quanto cristã, sempre existiu, porém, a imposição ideológica da classe dominante, mesmo se tratando de religiosidade, universaliza conceitos, pondo-os acima de quaisquer outros, obrigando a classe dominada a segui-los. Em última instância, encontramos uma relação de dominação, pois a justificativa de perda de cultura, caso não fossem canonizados os livros sagrados, mostra uma dominação ideológica.
Cabe a cada um de nós refletir e decidir, pois, toda reflexão e indagação levantada sobre a temática nos levará, tão somente, ao universo das discussões, porém, em última análise, devemos nós mesmos fazer  nossa escolha.  


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