"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

I FEIRA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA - UNESC

 
Apresentação
A I FEIRA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA – UNESC adotou o catavento como símbolo. Cores vibrantes, movimento que gera energia e sinergia, e anúncio de novos ares. Ventos que nos transportam para um tempo da calma, dos sabores artesanais, do cheiro de terra, e das novidades confeccionadas por mãos criativas e habilidosas, que se traduzem em produtos singulares.
Desejamos trazer para o campus um tempo quase esquecido, mas de forma alguma perdido, materializado nos produtos artesanais e de agricultura familiar, que engendram um desenvolvimento para além do econômico, mas sustentável, justo e igualitário. Para isso, três princípios nos guiaram: o projeto deveria ser construído na base, por artesãos e agricultores familiares; os estudantes configurariam o público alvo, para conhecerem e multiplicarem o movimento da Economia Solidária, e os apoiadores fariam a Feira acontecer, com suas idéias, recursos e conhecimento acumulado. A universidade seria a facilitadora deste processo.

A face da Feira foi se delineando com o incentivo estrutural da UNESC, em seus diversos setores, cursos, unidades acadêmicas, especialmente a UNACSA, Pró- Reitorias e Reitoria. De modo específico abraçaram este projeto, os grupos irmãos de extensão, como o POPE e o Programa de Coleta Seletiva, como também o Setor de Arte e Cultura, os Cursos Tecnológicos, e o Curso de Nutrição. Na comunidade foi decisivo o apoio de instituições sociais e filantrópicas, como a CARITAS, a ABADEUS, o BRASIL LOCAL, a AVESOL, o CRAS-CRICIUMA, a CREDISOL e a EPAGRI. As Prefeituras de Criciúma, Forquilhinha, Nova Veneza e Içara também acreditaram neste projeto, ou melhor dizendo na utopia de um projeto de produção centrado na sustentabilidade, cooperação e especialmente no bem-viver, que nunca se faz no isolamento, mas na coletividade. Em síntese, a palestra do professor Euclides André Mance abre a I FEIRA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA –UNESC, em 04 de outubro e nos dois dias que seguem, serão oferecidos cursos e oficinas abertas à comunidade, com vistas na geração de trabalho e renda; a exposição e comercialização de produtos artesanais e de agricultura familiar. E no encerramento está previsto um fórum, com foco na avaliação da Feira e respectivos encaminhamentos.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Feira de Economia Solidária na Festa das Etnias

A festa das Etnias deste ano contou com a participação de artesãos que mais uma vez entenderam que a cooperação supera a competição, e reunidos sobre os princípios da Gestão Democrática e do cooperativismo, puderam expor e comercializar seus produtos. Os mesmos são apoiados pela Abadeus e Fundação Cultural de Criciúma.

na ocasião nos reunimos para discutir os rumos do grupo e de sua organização para fins de fortalecer suas atividades.

A festa das etnias ocorreu entre os dias 13 e 18 de Setembro de 2011.


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Reflexõs Sobre a Existência Humana


Ismael Ferreira


Artigo escrito para cumprimento da disciplina Filosofia Existencialista no curso de Pós-Graduação em Psicologia Existencialista Sartreana da UNISUL.


Esboçar reflexões a cerca da existência humana nas perspectivas anunciadas nas aulas, torna-se o objetivo aqui perseguido. Porém, no máximo, arriscarei alguns apontamentos, uma vez que algumas dessas leituras devem ser amadurecidas e, com certeza, pretendo fazer isso posteriormente. De fato, para mim, o grande avanço está na melhor compreensão de Kirkingard e Heidegger, uma vez que ainda tinha dificuldade em compreender conceitos básicos, porém, sem os quais não poderia avançar minha compreensão sobre os referidos filósofos.
Inicialmente, prefiro discutir o conceito de angustia de Kirkirgard como ponto fulminante de sua filosofia. A angustia da existência em Kirkingard o leva as reflexões que, em última instância, desembocam no absoluto que escapa a aparência e a moral. Poderia dizer que Kirkingard vivencia sua filosofia, colocando a existência como objeto de reflexão filosófica, portanto, faz filosofia com sua existência e existe a partir de suas reflexões. O conceito mais imponente está no abandono de si no absoluto, pois esse abandono é filosoficamente refletido. Abandonar-se e ao mesmo tempo ter claro que o abandono não pode ser no aparente ou mesmo na moral, sendo que ambos devem ser superados num abandono no absoluto que nega a própria moral religiosa e a ultrapassa. Assim, somente perdido se pode achar-se e encontrar sentido para a existência. Somente no absoluto a angustia é superada, sendo que o elemento crucial nessa superação é a fé.
A relação de Husserl com o existencialismo está na base de seu método fenomenológico, uma vez que o fenômeno da existência passa a ser possível de ser conhecido a partir da sua filosofia. O deslocamento para o mundo, ou seja, conforme Husserl, ir as coisas mesmo, caracteriza sua relação com o existencialismo, pois ele foge do racionalismo que tenta interpretar o mundo e representa-lo, pela experiência vivida na relação com as coisas do mundo.
Heidegger, por sua vez, coloca um limite na compreensão do ser, cabendo apenas apreendê-lo parcialmente no ente, fenômeno em que o ser se mostra. A impossibilidade de apreender totalmente o ser em Heidegger é uma reflexão bastante oportuna para a Psicologia, uma vez que o objeto de investigação do psicólogo deve nunca ser inteiramente apreendido, pois, caso o psicólogo entenda que assim pode fazer, será capaz de achar que decifrou o enigma da existência. Heidegger faz ainda uma reflexão sobre o papel da Filosofia uma vez que muitos dos objetos dela passaram a ser objetos de ciências específicas. Então o que é Filosofia senão o pensar?
O Ser Psíquico deve nunca ser totalmente alcançado, deve estar sempre a frente do observador. Porém, referente a existência humana, o DASAIN heideggeriano mostra sua filosofia da existência, pois compreende o humano como jogado no mundo e no mundo define sua existência. Literalmente, Heidegger define o homem como jogado no mundo.
Segundo Sartre (1987), o sujeito no seu fazer-se, mostra-se como atuante e, portanto, capaz de projetar-se para além do tempo presente. Pode ele, projetar-se para o futuro e nesse movimento ele se faz, ou seja, no projeto de sua existência ele se torna o seu projeto. Ai está, segundo Sartre (1987), a diferenciação entre o homem e uma pedra, até mesmo um animal. O homem pode vir a ser o que projetou.
Esse pensamento já mostra o iniciar da diferenciação do existencialismo ateu e cristão, pois a possibilidade de uma escolha é a compreensão de que nada está determinado no céu. Obviamente, não se está explanando o ateísmo sartreano com todas as suas reflexões. Discutir-se-á no decorrer do texto com mais propriedade, porém, longe de pretender definir o termo conforme se deve, por esse não ser o objetivo dessa reflexão. A escolha deve ser compreendida de acordo com a atuação de cada homem na sua realidade concreta. Escolher significa agir em prol de si mesmo, porém, de acordo com as restrições das circunstâncias, levando em consideração a forma como a subjetividade de cada um está sendo construída. Por fim, em relação à escolha, cabe dizer que o homem escolhe mesmo quando se nega a escolher, pois acaba escolhendo a escolha do outro.
A escolha também não pode ser entendida numa perspectiva que descontextualiza o sujeito que é sempre histórico. Escolhas são sucessões de atos de escolhas a cada escolha reforça um comportamento que se torna, com o tempo, tão comum que o fazemos sem grandes reflexões, independentes das consequências. Refletimos apenas depois do sofrimento sem entender, muitas vezes, que as escolhas são construídas numa dinâmica de personalidade e não em atos isolados. Ninguém escolhe sua sexualidade num único ato de escolha, escolhemos na sucessão de escolhas no desembaraçar dos acontecimentos da vida, desde os primeiros momentos. Assim, por exemplo, é que se define a escolha no existencialismo.
O homem é plenamente responsável pelo que é, pelo o que se torna em cada escolha. Assim, o existencialismo pretende levar o homem à posse do que ele é e de responsabilizá-lo por sua existência. A responsabilidade é fundamental no existencialismo, pois essa corrente do pensamento filosófico-psicológico entende o homem em duas perspectivas: as escolhas individuais que faz de cada ser um ser único, sendo que cada escolha individual é também uma escolha de todos, pois quando uma pessoa escolhe individualmente algo para si, nunca escolhe o mal, pois escolhe o que pensa ser o melhor e, por isso, escolhe não só para si, mas faz de sua escolha a escolha de todas as pessoas. Dessa forma, cada escolha individual tem repercussão coletiva e, portanto, amplia a responsabilidade diante de cada escolha individual. O termo utilizado por Sartre (1987) é engajamento, que consiste no fato de que o ato individual engaja toda humanidade.
Na sua construção, o homem se faz a cada escolha e ação, se constrói, portanto, concretamente, age em prol de seu projeto, mas leva em consideração o seu desejo. O desejo é o que realmente quer, tem vontade. Muitas vezes o desejo não é levado em consideração pelo homem, pois pode ser vencido pelo dever-ser, que é a imposição das circunstâncias sobre o ele. Diante dessa forma de viver o desejo não aparece, o querer-ser fica sufocado pelo dever.
Fica evidente também que a existência traz consigo sentimentos como: angústia, desamparo e desespero, experimentados durante todo tempo em que o homem age no mundo. A escolha que não é apenas individual, mas coletiva, leva o homem à angústia de ter que escolher, diante da responsabilidade de saber que não apenas escolhe para si, mas para toda a humanidade. Porém, a angústia não leva ao quietismo, mas à ação e, é exatamente o ter que agir que produz a angústia e saber que o homem será diferente conforme suas escolhas, ou seja, o homem – e o mundo – serão o resultado de suas escolhas.
O existencialismo ateu vê na ausência de Deus a liberdade para escolha e o homem como único responsável por sua escolha individual, já que nunca será apenas sua escolha, pois quando escolhe para si, escolhe para toda humanidade, pois escolhe uma forma de existir. Por conta disso, cabe a responsabilidade que leva à angustia. Além dessa conclusão, é também o ateísmo sartreano que faz com que o homem experimente, além da angústia, o desamparo. Não há nada no céu que determine a vida na terra, portanto, o homem se encontra desamparado, pois não encontra, nem fora, nem dentro dele, algo no que se agarrar. Porém, o ateísmo sartreano não pode ser entendido na perspectiva de uma discussão teórica, mas da real sensação de desamparo, a qual o homem não pode fugir. O mais crente, em algum momento de sua existência, se sentirá sozinho.
O desamparo é o resultado da liberdade, pois a liberdade é uma experimentação fundamental na existência, é o que explica tudo, o desamparo, a angústia, o desespero: a liberdade é a real condição humana, sua condição ontológica: “Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta.” (SARTRE, 1987, p. 9). Portanto, o homem está condenado a ser livre. Pode-se dizer que o homem está livre até para se tornar escravo e, que sua liberdade pode ser restringida quantitativamente pelas circunstâncias, mas nunca tirada totalmente. Mesmo que sobre o mundo alguma ordem já tenha sido dada por outros homens anteriores, nada está determinado, pois o homem que é lançado ao mundo, pode ressignificar o já pronto. Deve ele construir-se e fazer de si um projeto para o futuro.
O desespero é um sentimento experimentado por conta da impotência humana diante dos acontecimentos. O homem pode contar somente com o que depende de sua vontade ou confiar num futuro de probabilidades, as quais, não se sabe se realmente se concretizarão. Pode-se contar com uma viagem de sucesso, pois o tempo está bom, o motorista é experiente, o carro está em condições adequadas. Essas questões dependem da vontade do viajante e de um conjunto de possibilidades que tem grande chance de estar correto, mas nada garante que a viajem vai ser de fato um sucesso, por isso o desespero. A ação humana gera desespero pela incapacidade de controlar tudo o que vai acontecer.
Todos esses situações aparecem na vida de cada ser lançado no mundo e, o movimento que se faz no mundo, pode produzir cada sensação em demasia, gerando sofrimento que precisa ser compreendido e superado. Nesse sentido, a terapia de base existencialista tem como finalidade compreender o movimento do sujeito no mundo e mostrar que ele é responsável por suas escolhas, mas que suas escolhas não precisam ser sempre essas que o faz sofrer. Há sempre outras possibilidades. A terapia existencialista visa também a aproximação do desejo em relação ao projeto.


REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 304 p.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. 32 p.
SARTRE, Jean-Paul. Crítica da Razão Dialética: precedido por Questões de Método. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 900 p.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Evento Rua do Lazer

No dia 03 de Setembro aconteceu a exposição de artesãos e atividades culturais na rua da Escola sebastião Toledo dos santos "Colegião",
Na ocasião tivemos a oportunidade de reunir os artesãos e conversar sobre a necessidade de os mesmos se unirem para conquistarem espaço para exposição e políticas públicas de insentivo.




Feira Mãos da Terra - Criciúma


Aconteceu em Criciúma, na primeira semana de Julho a Feira Mãos da Terra, com participação da Abadeus em seu apoio aos empreendimentos que se organizam por meio da cooperação e gestão democrática, numa lógica de Economia Solidária.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

UM OUTRO OLHAR

Artigo escrito para conclusão da disciplina de Ontologia e Fenomenologia do Mestrado em Filosofia da UFSC.

Ismael Ferreira

Apesar de minha leitura inicial de Merleau-ponty, ouso fazer alguns apontamentos que os julgo importante. Sigo a proposta apresentada pelo professor Marcos Müller, escrevendo um texto livre e desprovido de qualquer “intencionalidade” acadêmico-científica (refiro-me ao rigor técnico). Ao contrário, ouso tomar uma parte do texto de Visível e Invisível como significante, sem descartar que não vejo o texto unicamente com o meu olhar, nem o descontextualizo, mas observo com olhares outros que, em alguma medida, também são meus. Trato das conversas com colegas sobre as aulas no decorrer do curso, as próprias aulas e as leituras realizadas para a disciplina.
Almejo refletir sobre um outro olhar que retorna como sendo o olhar sobre o vidente e, nesse sentido, segundo Lacan, a pulsão freudiana como tal outro olhar. Para tanto, cabe compreender em Merleau-ponty, na medida em que, de alguma forma, se confirma a reflexão de Lacan a cerca da existência da pulsão na filosofia merleau-pontyana, as hipóteses levantadas no curso, resultado de todas as discussões que nos cercaram durante este semestre. Lembro que estou arriscando olhares, tão somente arriscando.
Para Sartre, a consciência espontânea, por sua intencionalidade, que em sua transcendência encontra os objetos, cujos quais estabelece relações, percebe que o outro é também objeto até que o limite do encontro entre o olhar do vidente e o olhar de um outro vidente, que deixa de ser objeto por sua vidência, se encontram, denunciando a existência de um outro olhar, e de um outro vidente. O olhar de um vidente denuncia aspirações que não lhe pertence e, da mesma forma, o outro vidente, que até antes do cruzamento do olhar era objeto, também percebe aspirações que não lhe pertence. Enquanto Merleau-ponty, evidencia o olhar que não é do outro, mas um outro olhar de mim mesmo que retorna estranhamente. Essa compreensão que faz Lacan remeter-se a existência da pulsão freudiana em Merleau-ponty, diferenciando-o significativamente de Sartre. Não no sentido de compreender o olhar do outro que me arrebata, mas de vislumbrar um outro olhar de mim mesmo que me desestabiliza. E sobre esse outro olhar  que retorna é que segue essa tímida reflexão.
O visível é tudo aquilo que o vidente é capaz de apalpar pelo olhar, dentro do seu campo fenomenológico. Porém, Merleau-ponty entende que os objetos existem independente de um eu perceptivo. O meu corpo está no mundo e não representa por um eu a priori o mundo. Nesse sentido, um certo panteísmo merleau-pontyano pode ser constatado. Assim, o invisível, por sua vez, da seguimento ao visível. Conforme Merleau-ponty, a compreensão mais evidente do invisível está, a meu ver, na reflexão que ele empresta de Proust: “Ninguém foi mais longe que Proust ao fixar as relações entre o visível e o invisível na descrição de uma idéia que não é o contrario do sensível, mas que é o seu dúplice e sua profundidade” (Merleau-ponty, p. 144). Nesse sentido, o invisível ganha conotação que não pode estar relacionada com qualquer idealização, pois não está na cisão do sensível, mas ao contrário, no seu aprofundamento. Porém, para além do Visível e Invisível, encontro na página 135 um texto que pretendo discutir. Um único parágrafo que inicia na página citada e se estende até a página seguinte (136).
O texto inicia refletindo a relação do vidente com o visível, supondo uma certa estranheza na aderência do vidente e do visível. Essa estranha aderência ocorre quando algo visível volta-se sobre o todo visível, ou é envolvido por ele, ou ainda, por intercambio dele torna-se uma visibilidade em si. Essa visibilidade que não pertence nem ao corpo nem ao mundo é como um espelho em frente de outro espelho, produzindo imagens que se estendem ao infinito e que não podem ser se não replicas uma da outra.

Cabe perguntar o que encontramos de fato com essa estranha aderência do vidente e do visível. Há visão, tato, quando certo visível, certo tangível se volta sobre todo o visível, todo o tangível de que faz parte, ou quando de repente se encontra por ele envolvido, ou quando entre ele e eles, e por seu intercâmbio, se forma uma Visibilidade, uma Tangibilidade em si, que propriamente não pertence nem ao corpo como fato nem ao mundo como fato – tal como dois espelhos postos um diante do outro criam duas séries indefinidas de imagens encaixadas, que verdadeiramente não pertencem a nenhuma das duas superfícies, já que cada uma é apenas réplica da outra, constituindo ambas, portanto, um par mais real do que cada uma delas. (Merleau-ponty, p. 135)

Nesse sentido, pode-se dizer que a algo de estranho na observação, como se o vidente, em algum momento perdesse, ou ainda, se perdesse no seu ofício de olhar, não inteiramente, pois caso assim fosse, ou vidente ou visível deixariam de existir. Há algo que escapa a visão, que não pertence nem ao corpo, nem ao mundo. O exemplo de Merleau-ponty para discutir esse impasse entre o vidente e o visível está numa metáfora apropriada: dois espelhos de frente um para o outro refletindo imagens indefinidas, que são réplicas uma da outra. Portanto, não se sabe de um inicio, pois são copias das imagens refletidas e não da superfície. Um espelho na frente de outro espelho reflete sua própria imagem, assim, conforme Merleau-pont, o vidente vê a si mesmo por estar preso no que vê, no espelho, ou melhor, nas coisas vistas. E é exatamente estar preso nas coisas que viabiliza o sentir das coisas, o ser visto por elas. E é por essa visão que retorna que há viabilidade de sentir o sofrimento das coisas. Dessa forma, conclui dizendo que os pintores, muitos deles, sentem-se observados pelas coisas.
Existe, segundo Merleau-ponty, um certo narcisismo no olhar que, conforme já vimos, possibilita o sofrer pelas coisas. Mas há um segundo sentido para o narcisismo, mais profundo, que é não ver de fora, mas ser visto de dentro, existir nas coisas, migrar para elas. Assim, vidente e visível se mutuam de forma que não mais se saiba quem vê e quem é visto. Discute-se nessa reflexão compreender que fenômeno pode ser este que emerge sem origem, que não se sabe de onde vem. Na medida em que Merleau-ponty avança nessa reflexão, Lacan percebe maior possibilidade de relação com a pulsão freudiana.
Percebo que há um vazio no fantasma merleau-pontyano, uma falta, algo a preencher, que viabiliza uma busca infinita a partir de significantes. Tal qual as imagens refletidas no espelho, que produzem cópias e cópias, tendendo ao infinito. Portanto, Merleau-ponty caminha sobre um chão que o engole e o mistura as substâncias do terreno sobre o qual caminha. E desse envolvimento vislumbra sua filosofia.
O texto que aqui será exposto, penso ser definitivo para a discussão proposta, apesar de não conseguir encontrar o local exato da reflexão da qual Lacan parte.

(...) É a essa Visibilidade, a essa generalidade do Sensível em si, a esse anonimato do Eu-mesmo que a pouco chamávamos carne, e sabemos que não há nome na filosofia tradicional para designá-lo. A carne não é matéria, no sentido de corpúsculos de ser que se adicionariam ou se continuariam para formar os seres. O visível (as coisas como meu corpo) também não é não sei que material “psíquico” que seria, só Deus sabe como, levado ao ser por coisas que existem como fato e agem sobre o meu corpo de fato. De modo geral, ele não é fato nem soma de fatos “materiais” ou “espirituais”. Não é, tampouco, representação para um espírito, um espírito não poderia ser captado por suas representações, recusaria essa inserção no visível que é essencial para o vidente. A carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria preciso para designá-la o velho termo elemento, no sentido em que era empregado para falar-se da água, do ar, da terra e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa em geral, meio caminho entre o indivíduo espácio-temporal e a idéia, espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua. Neste sentido, a carne é um elemento do Ser (...) (Merleau-ponty, p. 135,136)

 Aqui evidencia-se uma percepção de Merleau-ponty que se torna apropriada para ocasião, a existência de um Eu-mesmo anônimo. O que também foi chamado de carne. O que vem a ser a carne? Ou ainda o que vem a ser um Eu-mesmo anônimo? Um Eu que me é anônimo, anônimo a mim mesmo? Uma carne que não é matéria de nenhuma natureza, nem material e nem espiritual? Segundo Merleau-ponty a carne é um elemento, um elemento do ser. Nos atentemos as impossibilidades da carne: não é espiritual, nem material, nem uma substância. É um elemento, mas de que material psíquico é composto? Paira uma estranheza, uma indefinição. O que poderia defini-la de forma mais esclarecedora seria a comparação com os lábios que, em contato, deixam pedaços de carne quando se tocam, uma parte noutra. Assim, poderia ser entendido a carne e o mundo.
Poderia estar na carne a ligação da filosofia merleau-pontyana com a pulsão freudiana? Penso que somente nela poderia existir essa possibilidade. Essa indefinição poderia, em alguma medida, ser associada ao inconsciente? Penso encontrar nessa impossibilidade e indefinição a única possibilidade de interpretação a cerca da pulsão como vazio e, nesse sentido, o Eu-mesmo anônimo como passividade. Mas ainda arrisco palavras ao vento.
Conforme Merleau-ponty, a arte pode nos conduzir à estranheza. Assim, recorro à poesia de Chico Buarque como expressão desse olhar que, em alguma medida, não se sabe qual, não está no mundo nem no vidente, não se sabe se o vidente observa ou é observado. Tal poesia especula e questiona a indefinição de algo que existe, que se percebe entre as coisas, nas coisas e mesmo no vidente, mas não se sabe o que. Uma estranheza inquietante, desconfortante, impossível de ser impedida de existir. Algo que escapa todas as formas de controle, inclusive da soberania da razão.
Particularmente, percebo tal desconforto ao ouvir a música. Sinto uma sensação de que há algo que não se explica. Talvez seja essa a razão da busca de um filósofo que pensa poder atingir a verdade. Não diferente deste, um artista que, por meio da arte, tenta dar sentido a este inexplicável. Algo que na Clínica Lacaniana talvez possa ser conhecido como objeto pequeno “a”.

O Que Será
Chico Buarque

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam  nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será que será
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido
O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo


Referências

MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CHICO BUARQUE. O Que Será. Álbum Perfil. Manaus: Globo, 2003.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Formação e Articulação Política na Feira Latino Americana de Economia Solidária de Sta. Maria

A Feira de Sta. Maria aconteceu nos dias 1, 2 e 3 de Julho de 2011.





Entre Lágrimas e Risos

O nascimento da comédia grega e suas implicações na política brasileira contemporânea


Artigo publicado no Anexo Ideias do Jornal A Notícia em 31 de Outubro de 2010




Cleuza do S. A. da Silva[1]
Ismael Ferreira[2]

Risos de Demócrito & Lágrimas de Heráclito

Num texto escrito pelo Padre Antônio Vieira, fruto de uma investigação para resolver um problema proposto pelos cardeais da academia romana, no ano de 1674, foi discutido o seguinte argumento: o mundo é mais digno de lágrimas ou de risos, e qual dos dois filósofos foi mais prudente, Heráclito que chorava sempre, ou Demócrito que ria sempre? Para este problema coube ao Padre Antônio Vieira defender Demócrito e seus risos, enquanto o Padre Jerônimo Caetano, também da companhia de Jesus, defendeu Heráclito e suas lágrimas.
Assim, coube, tanto a Antônio Vieira como a Jerônimo Caetano, defender os opostos, sobre os quais se instaurou a problemática. Ambos apresentaram suas conclusões, defendendo as posturas dos filósofos em questão, e argumentado sobre um pano de fundo: o mundo é mais digno de risos ou de lágrimas. Nesse sentido, a proposta deste ensaio é discutir, inicialmente, as conclusões intrigantes e provocantes de Antônio Vieira para, mais tarde, relacioná-las com o nascimento da comédia e da política na Grécia e suas repercussões na modernidade.
Inicialmente, Antônio Vieira classifica as possíveis expressões de choro: choro com lágrimas, choro sem lágrimas e choro com risos. Sendo que chorar com lágrimas é chorar com dor moderada, chorar sem lágrimas é chorar com grande dor, chorar com risos é chorar com dor suma e excessiva.
Assim, compreende Vieira, a dor excessiva faz rir enquanto a dor moderada leva às lágrimas. Parece contraditório, mas a recíproca é verdadeira: a alegria excessiva faz chorar, portanto, a tristeza excessiva, pode fazer rir. “Pois, se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza, por que não será causa do riso?” (VIEIRA, 1679, p p 31, 32. v. XII). Sendo assim, o riso de Demócrito significava ironia do pranto, pois ria ironicamente, sendo seu riso nascido de seu pranto e de uma tristeza.
Os olhos não dão conta de desafogar a alma, por isso, recorre o homem a outros mecanismos, como as mãos. Sendo comum ao chorar, bater as mãos. Ora, se as mãos são utilizadas ao chorar por que a boca não seria? Heráclito chora com os olhos, Demócrito com a boca. Entre risos e lágrimas, cabe uma outra compreensão: Heráclito chorava da miséria humana, Demócrito ria da ignorância. Mas, a ignorância é a expressão da miséria, portanto, ria Demócrito também da miséria humana.
A relação da miséria com a dor é estreita, por isso, foi necessário separar a miséria do que lhe é próprio, a dor. O fizeram com louvor no nascimento da comédia. Tiraram sua base real, pois, na comedia, não se ri da miséria, mas de um faz de conta, de uma ficção que representa a miséria, mas não é diretamente miséria. Na comédia, não se veem miseráveis e suas misérias que, na vida real, provocam tristezas. Mas então o que se vê? Representações, simulações das misérias reais, e, por serem simulações, provocam risos.
Nesse sentido, Heráclito ao chorar torna-se capaz de persuadir mais fortemente, pois lágrimas sensibilizam, enquanto risos provocam zombarias e indiferença. Portanto, Heráclito desperta sentimentos tais como esperança, enquanto Demócrito desperta sentimentos outros como apatia. “Com muito mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e, zombando do juízo dos outros, expunha o seu a zombaria”. (VIEIRA, 1679, p 36).
Diante dessas reflexões, faz o Padre Antônio Vieira uma indagação: “Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo mundo chora e ensina a chorar?” (VIEIRA, 1679, p 37). Qual o lugar do riso, qual reflexão pode ser feita a partir dessa expressão? De que forma o riso pode ser levado a sério? Ao partir da reflexão de que a excessiva alegria leva ao choro, abre-se espaço para compreender como verdade o oposto: a excessiva tristeza leva ao riso. Nesse sentido, diz Vieira: “Aqueles mesmos que mais se riem por fora mais choram por dentro”. (VIEIRA, 1679, p 38). Assim, Demócrito com seu riso demonstra tristeza excessiva, que ultrapassa as lágrimas e o cessar das lágrimas, desembocando no riso.


A Organização da Polis e da Comédia Grega

No século VIII a.C., o comércio faz ressurgir a polis grega terminando com o isolamento das aldeias e oportunizando uma nova forma de organização da vida. O espaço mais cobiçado passa a ser a Ágora (praça pública), local em que todos os homens, cidadãos, discutiam os rumos da vida na cidade. A política nada mais é do que a ação do homem na cidade, portanto, o termo ultrapassa a compreensão obtida na atualidade que entende o termo dentro da ação do homem público frente as demandas da sociedade. A política grega era feita por todos os homens nas suas ações diárias, porém, discutidas somente por homens livres, portadores de títulos de cidadãos.
Nesse momento o caos da mitologia dá lugar à ordem do kosmos (mundo), estabelecido pelo logos (palavra). Portanto, o uso da razão (lógica) é que passou a direcionar a vida grega e não mais a crença em deuses e mitos. Assim, a filosofia se desenvolveu na medida em que se desenvolveu a democracia grega (talvez a filosofia tenha desenvolvido a democracia grega), pois nela o homem pôde se propor a discutir a cidade, a religião, a moral e a vida.
Os homens passaram a discutir os rumos da vida. A partir desse momento os eventos sociais ganharam significativa importância. Os dramas humanos passaram a ter a necessidade de encontrar espaço na cidade, porém, sem o poder dos mitos de outrora. Nesse sentido, tornam-se espetáculos para arte, ganham um lugar específico na vida dos gregos: o anfiteatro. Nele se dramatiza a vida e a vida cessa de ser dramatizada no fim do espetáculo. Cabe na vida a lógica da organização da polis pela palavra (logos). Na arte couberam os devaneios, impulsos, paixões...
Ora, então as lágrimas de Heráclito, ou os risos de Demócrito, escapam o cessar do espetáculo, continuam nas ruas e, por isso, incomodam. A única forma de conviver com tais disposições dá-se na negação da relação com a realidade. Fingir que são expressões perdidas, desvinculadas e desconexas da vida. Somente assim pode-se conviver com tais feridas que não cicatrizam e sangram sem cessar. Nessa reflexão pode-se ver o nascimento da comédia na polis grega, como uma necessidade imposta pela condição humana.
A defesa do Padre Antônio Vieira sobre a superação dos risos de Demócrito em relação às lágrimas de Heráclito mostra o quanto a dramatização voltada para o humor, muitas vezes, supera em dor a dramatização que leva às lágrimas. Portanto, a comédia tornou-se o mecanismo através do qual sentia sua dor com o endurecimento necessário para continuar a vida na polis lógica e racional que, não admite emoções tais como a mitologia admitia.
Nessa perspectiva, a comédia grega é a simulação da dor mais intensa vivenciada na arquibancada do anfiteatro. Rir da organização da polis no anfiteatro é rir numa dosagem mais suportável que Demócrito, pois este ria da própria realidade. Assim, o espaço e o tempo restrito da comédia na polis não permitia o desvanecer dos cidadãos, tal como Demócrito que ria sempre e em todo lugar.
Para o Padre Antônio Vieira, a comédia tirou a miséria da vida real e a transportou para o palco. Ora, a miséria real não deve provocar risos, os homens não podem rir da desgraça humana, tal como ela é, mas podem rir se não for propriamente a desgraça, mas a simulação da desgraça. Nesse sentido, a comédia permite o riso por não se tratar das dimensões reais dos problemas e dramas humanos, mas do personagem que, não necessariamente o sofre. Se não o sofre torna-se permitido rir. Porém, no fundo estamos rindo da mesma desgraça, somente mudamos sua roupagem.


Reflexões sobre Política no Brasil

Segundo Antônio Vieira, os risos de Demócrito denunciam a falta de perspectiva que temos com as soluções propostas pelos lideres políticos. Rir significa perder a esperança, não acreditar na mudança. Nesse sentido, a inserção, desde a Grécia Antiga, do riso desmedido e escancarado de Demócrito denuncia a impossibilidade de ver uma perspectiva solucionadora para a vida social. Tal riso invade primeiramente a própria vida na polis por Demócrito, mas encontra seu apogeu no teatro grego. O próprio Aristóteles dedica uma obra para discorrer sobre a Comédia, depois de mostrar a catarse da tragédia. O livro é anunciado pelo próprio Aristóteles ao discorrer de forma inicial e superficial sobre a tragédia, porém, não se sabe da conclusão e nem do paradeiro do mesmo. O filme O nome da Rosa do diretor Jean Jacques Annaud, baseado no livro de Umberto Eco se propõe a discutir a existência do texto de Aristóteles.
Voltando a questão proposta para Antônio Vieira e Jerônimo Caetano, podemos adaptá-la ao contexto vigente, especificamente ao processo eleitoral brasileiro de 2010. A questão persiste: “O mundo é mais digno de lágrimas ou de risos?” Contextualizando-a: “A política brasileira é mais digna de lágrimas ou de risos?”
Se remetermos as duas últimas décadas da história política do país ao anfiteatro grego, teríamos que tipo de dramaturgia: tragédia ou comédia? Entendendo que somente na arte podemos nos dar ao choro ou riso, o anfiteatro torna-se o local único para experimentarmos e expressarmos tais emoções, apesar de que aqui não passa de um simulacro.
Nós brasileiros diante desse “espetáculo” político contemporâneo seriamos tomados por um choro emocionado que expressa a felicidade diante de práticas com as quais nos identificamos e nos sentimos amparados em nossas misérias sociais? Ou o choro denunciaria a infelicidade decorrente de uma política omissa e corrupta, cuja reação expressa um sentimento consciente de revolta que ainda nos arrasta à ação? Ou ainda riríamos debilmente, como consequência de um processo alienatório que nos castra a percepção real dos acontecimentos e nos priva da ação? Ou então o riso seria nosso último recurso que denuncia a total impotência humana frente aos acontecimentos políticos, diante dos quais cabe como única expressão o riso, como dor mais profunda. O qual muitas vezes é causa e consequência da comédia realizada pelos próprios candidatos em suas campanhas, expressando que até eles mesmos tem na essência dos seus discursos o mesmo riso de descrédito de Demócrito.
Nesse sentido, o riso nos leva a uma omissão irônica, onde a prática se restringe ao deboche e não a mudança concreta. Por outro lado, o choro nos traz a consciência e a esperança que nos remete a mudança. Portanto, choremos a política brasileira, certos de que nosso choro nos trará a consciência necessária para mudarmos o curso do nosso país. 
Estamos mais perto dos risos de Demócrito ou do choro de Heráclito? Quando um comediante é eleito com votação recorde o que podemos esperar, o que podemos concluir? Tiririca nos faz rir e nosso riso custará nossa esperança. Ele escapa do palco para a vida, para a polis moderna e sobre ele lançamos nossa dor mais profunda, nosso riso, que é no fundo, conforme o Padre Antônio Vieira, chorar com a boca. Pois, se podemos chorar de felicidade, podemos também rir de tristeza. 



[1] Professora de Geografia do Ensino Médio da EDUTEC-SATC
[2] Psicólogo Clínico e Social

Série Convite ao Divã

Artigos publicados no Jornal do Rincão durante os meses: Outubro, Novembro e Dezembro de 2009.


Ismael Ferreira 

Solidão como Oportunidade

Nem todos nós temos a capacidade de conviver com a solidão da forma como o filósofo alemão Nietzsche convivia. Adorava passar longos momentos sozinho. Uma frase dele nos traz sua compreensão e a importância que dava a solidão: “Não me tires da solidão se não fores me oferecer boa companhia”. A verdade é que estamos na contramão do ditado popular que diz: “antes só que mal acompanhado”. Parece que preferimos uma má companhia à solidão. É verdade que há um lado solitário dentro de todos nós, que hora ou outra se manifesta, mas a solidão constante muitas vezes nos angustia. Mesmo Nietzsche que era apaixonado pela solidão, entendia que seus escritos iriam ser compartilhados no futuro e isso o alimentava.
O grande dilema do mundo moderno é a solidão daqueles que estão acompanhados, ou seja, a solidão não como ausência de companhia, mas como sentimento implacável mesmo quando desfrutamos a companhia de outras pessoas. Os grandes centros demonstram tal tendência: sujeitos rodeados de pessoas, porém, solitários. A tecnologia dá sua contribuição com, por exemplo, a Internet, que conecta as pessoas de todo o mundo e as deixa solitárias nas suas casas, apartamentos e escritórios.
A tendência dos relacionamentos demonstra a dificuldade de querer ver o outro e se deixar ver pelo outro. Preferimos manter sempre uma certa distância nos relacionamentos, pensando assim evitar o sofrimento. A consequência mais imediata é realmente evitar o sofrimento, oriundo de um relacionamento mal sucedido, mas, em longo prazo, a distância que mantemos das pessoas nos leva à solidão.
Todos nós, em algum momento da vida, já experimentamos a sensação de estarmos sozinhos, a sensação de desamparo quando precisamos de apoio, de ter um abraço ao dormir e perceber que abraçamos o travesseiro ou o próprio corpo. A solidão nos persegue nas noites em claro, nos ônibus em que com o olhar perdido na janela, não olhamos para lugar algum, nos passos lentos e cambaleantes que damos com a cabeça inclinada olhando os pés se moverem, na solidão do retorno à casa depois de um dia exaustivo de trabalho, na saudade de alguém que já se foi, no vazio de sentido da vida diante de uma tragédia que arrancou de nós um bem muito precioso.
A solidão está sempre entre um desejo ainda não atingido e a saudade de um momento que já se foi. O desejo ainda não atingido é o que almejamos, nossa busca. Achamos que a realização desse desejo tornará possível a saída da solidão, mas na verdade os desejos realizados são substituídos por outros, num movimento insaciável que nunca se contenta, mas nos projeta para o futuro, nos desconectando do presente e do passado. Assim, nem vivemos o presente, nem recordamos o passado. A saudade do que se foi nos faz experimentar a solidão de querer reviver o que não pode mais ser vivido, pois o tempo já o consumou. Assim, ficamos presos no passado que já não existe.
O segredo está em aceitar a solidão não como algo ruim, mas como possibilidade de conhecer o que quase não conhecemos, nós mesmos. A solidão nos permite olhar para dentro e encontrar boa companhia. Mas, muitas vezes, o que falta é um pouco de amor próprio para atentamente observar tudo em nós que nas relações vemos nos outros e fazemos deles algo fundamental, mas do que nós mesmos. Dessa forma, a solidão não é somente sofrimento, mas oportunidade de encontro com nosso próprio ser.



Quando Não Atingimos Nossas Metas

Inicialmente, cabe uma reflexão sobre a construção das metas as quais perseguimos durante nossas vidas. Vislumbro um primeiro fator fundamental, o outro. Quando digo o outro, refiro-me a um conceito bastante amplo, pois o outro aparece em nossa vida pela primeira vez no momento em que, quando ainda crianças, passamos a perceber que a mãe não é extensão de nosso corpo, mas um outro corpo. Agravasse mais no momento em que a cultura nos diz que devemos amá-la para merecer sua atenção, seu cuidado, seu carinho. Nesse momento a um deslocamento do desejo próprio da criança para a mãe e assim nasce a perspectiva do outro como fundamental para realização pessoal. Agravamento ainda maior ocorre na falta da mãe, pois o deslocamento do desejo não encontra um objeto e desde sedo há frustração.
Obviamente que esse primeiro grande outro se mostra de tal forma e tão imponente que condiciona nosso desejo e expectativa a ele. Levando em consideração que esse outro nunca nos satisfaz inteiramente, que sempre almejamos mais dele do que ele pode nos dar, essa relação está fadada ao fracasso. A mãe não é o único outro em nossa vida, como não é a única mulher na vida de um homem. Mas as expectativas deixadas por essa relação mãe-filho serão perseguidas durante toda a vida. A mãe não é apenas uma mulher dentre tantas, é a expressão cultural do nosso condicionamento para a aceitação do mundo. Em termos mais claros, desde pequenos o mundo nos dá metas a seguir e quase nunca estas metas significam satisfação e felicidade, significam sim, obrigação para com os outros. Obrigação tão enraizada que nos culpamos quando não correspondemos e exigimos dos outros o cumprimento delas, quando nós mesmos estamos por abandoná-las. Obrigação para com os filhos, por mais problemas que possam dar, para com os maridos, para com os patrões, para com o Estado, a Igreja...
Quando adultos passamos a pensar melhor na vida, exatamente por vislumbrar o fato de que ela pode acabar a qualquer momento. E nesse momento percebemos nosso movimento em prol de nossas metas. Tendo cumprido-as ou não, o fato é que começa a parecer absurdo cumprir metas cuja satisfação não é o resultado. Tanto aqueles que atingem suas metas, quanto aqueles que não conseguem atingir, frustram-se consigo mesmos: ou por não atingirem, julgando-se incapazes, ou por atingirem e não encontrarem real satisfação, tendo a sensação de terem se empenhado por nada. Todos se frustram por perceber terem sido enganados num projeto que não refletiram bem tal engajamento que ocupou boa parte de suas vidas.
A primeira coisa a ser pensada num momento em que estamos na contramão de nossas expectativas está numa reflexão aprofundada sobre o sentido de nossa existência. Conforme Nietzsche: “Quem encontra um porque? Encontra um como?” A questão fundamental está na escolha dessas metas: se elas foram feitas com esclarecimento suficiente para saber onde nos levaria, ou foram acontecendo? Quanto maior auto-conhecimento tivermos, mais capacidade de definir nossas metas. Não tão altas que não possam ser atingidas, não tão baixas que não nos desafie. Nossa expectativa também deve ser trabalhada para que caso não venhamos a atingir as metas pretendidas, não nos frustremos de tal forma que nada mais tentemos na vida. Por fim, pessoas que se conhecem melhor, podem até não realizar grandes feitos para o mundo, mas vivem melhor. Basta pesar o mais importante: você ou os outros. Poderíamos dizer em outros termos: você ou suas metas, pois se estiverem em contradição com você, não são suas.



As Emoções


A Psicologia Existencialista compreende que as emoções sempre estão relacionadas com um objeto ou situação. Não há emoção que brota por si mesma de algo interno sem relação com o mundo a nossa volta. Ninguém fica triste sem motivo, pode ser que você não consiga relacionar a sua tristeza com um possível motivo, mas isso não quer dizer que não exista um. Na Psicanálise, por exemplo, quando não sabemos a razão de uma emoção sentida, atribui-se ao que Freud chamou de Inconsciente. O Inconsciente é um “local” em nós que abriga as vivências que não são mais lembradas.
Assim, nos diz a Psicanálise, quando acordamos pela manhã com um aperto no coração e não sabemos o motivo, foi porque num sonho (as vezes nem lembramos mais dele pela manhã) liberou do inconsciente uma emoção e não conseguimos fazer nenhuma conexão com uma situação específica. Essa emoção pode nunca ser compreendida, pois pode estar relacionada com algo vivenciado numa infância muito tenra. Na Psicologia Existencialista nossas emoções estão relacionadas com nossas experiências e, por isso mesmo, devem ser compreendidas a partir das experiências causadoras dessa: alegria, tristeza, amor, ódio, frustração...
Nós, Psicólogos Existencialistas, não trabalhamos com a ideia de um Inconsciente, mas concordamos com o fato de muitas vezes não conseguirmos associar nossa emoção a um fato específico. Porém, o mais importante para a Psicoterapia Existencialista é poder compreender a forma como sentimos nossas emoções e como construímos esse jeito particular de lidar com elas, que cada um de nós desenvolve durante a vida.
Um olhar mais atento sobre nós mesmos, principalmente quando estamos num processo terapêutico, mostra a intensidade das emoções que experimentamos. Não é por nada que para algumas pessoas a tristeza é mais intensa quando está diante de uma separação, enquanto outras ficam mais tristes com ausência de recursos financeiros e outras com a solidão. O motivo de maior ou menor emoção nas diferentes situações está no fato de que naquele momento que experimentamos a emoção como a tristeza pela separação, apesar de ser uma experiência única, ela é experimentada tendo um acumulo de tantos outros momentos de separação que se somam e indicam uma forma própria de lidar com a separação que foi construída ao longo da vida e, por isso mesmo, se sofre mais ou menos, pois depende do quanto essas situações nos afetaram.
Compreender a forma como lidamos com as emoções e como desenvolvemos essa estrutura de personalidade, esse jeito próprio de lidar com as coisas que, vez por outra nos afronta, é o primeiro passo dentro de uma terapia. Agora, conseguir modificar esse jeito de lidar com as emoções por outro que nos faça sofrer menos é o segundo e mais difícil passo. Para tal, deve existir apoio terapêutico para que a pessoa possa arriscar outras e diferentes formas de vivenciar as emoções. A ideia de mudança é o ponto que deve ser discutido, pena que muitas pessoas preferem sofrer da forma que já estão acostumadas do que mudar para uma vida melhor.


Feridas na Alma


A palavra Alma tem sido utilizada para se referir ao que chamamos de mundo interior, ou seja, o conjunto de sentimentos, emoções, vivencias, significações e pensamentos que pertencem a cada indivíduo. Mas nem sempre alma teve esse significado. Já significou, em momentos historicamente distantes, coração, vida, sangue e, em idiomas como hebraico e o grego, o sentido da palavra alma se aproximou do sentido da palavra espírito, que significava sopro de vida, vento, anjos e demônios...

Husserl, filósofo e matemático alemão, mudou a leitura que a Psicologia tinha da alma, pois afirmava a existência de um elo entre a alma e o mundo em sua volta. Husserl chamou esse elo de intencionalidade da consciência. Não nos deteremos aos dados técnicos que aqui nada interessam. Nos deteremos a compreensão de como a alma passou a ser entendida na Psicologia depois de Husserl, principalmente a Psicologia Fenomenológica-Existencialista, para poder entender o processo que ocasiona o que aqui chamamos de feridas na alma.

A partir das reflexões de Husserl, algumas ilusões mantidas pela filosofia idealista e pela religião começaram a ruir, pois a alma não pôde mais ser considerada como existindo desde sempre, contendo em si tudo o que necessita, como se estivesse completamente separada do mundo a sua volta. A primeira grande verdade que aparece é que as coisas com as quais estabelecemos relação nos afetam. Há um canal, pelo qual, fazemos parte do mundo a nossa volta e o mundo passa a fazer parte de nossa interioridade.

Assim, torna-se inevitável que as coisas com as quais estabelecemos relação, ora ou outra, nos afete, nos fira. São as coisas que experimentamos e não fazem bem, as palavras ásperas que ouvimos e nos calamos diante delas, o dia-a-dia dos conflitos inevitáveis dos relacionamentos que nas palavras do poeta encontram o sentido do que almejo expressar: “... como rios secando e as pedras cortando” (Gonzaguinha), referindo-se ao embate entre dois mundos interiores na tentativa de uma relação amorosa que, para poder ser bem sucedida, tem de encontrar a forma mais adequada para que um possa entrar no mundo do outro e deixar que outro entre no seu mundo. Mas, mesmo que a forma mais adequada seja atingida, sempre esbarraremos em farpas. Merleau-ponty, filósofo francês, diz que a relação que estabelecemos com o mundo pode ser comparada ao lábio superior tocando no lábio inferior, deixando um pouco de sua carne e recebendo um pouco da carne do outro lábio. Assim, vivemos deixando um pouco de nossa carne no mundo que resolvemos habitar e colhemos um pouco da carne do mundo habitado. O desafio clínico é encontrar o caminho mais adequado para cada sujeito nas suas relações com o mundo e com os outros.

As relações que experimentamos na vida nos ferem a tal ponto que muitas vezes nos fechamos para toda forma de relacionamento. Preferimos estar no mundo sem contato com os outros, indiferentes. A vida nos golpeia e, por isso, adoecemos.

Algumas pessoas sangram por suas feridas e caminham sangrando e morrendo, outras, conseguem fazer cicatrizarem as feridas, mas continuam ali, e num esforço um pouco maior rompem as cicatrizes e fica evidente que elas ainda estão ali.

Cuidar das feridas que temos não é tarefa fácil, pois teremos que mexer nelas, mas é o mais indicado para a cura.


E se a Vida se repetir Eternamente



O termo Eterno Retorno desenvolvido por Nietzsche, considera a repetição constante da vida uma condição eterna, ou seja, todas as coisas retornam eternamente. Assim, viveremos a mesma vida, com toda a dor e felicidade, eternamente. Tudo o que existiu, existirá outra vez, a história se repetirá, as múltiplas formas de organização da matéria se repetirão, pois as forças são eternamente ativas. A vida, para Nietzsche, se constitui como vontade de potência e são essas energias potencializadas que se repetem eternamente, pois a eternidade é a condição do ciclo da ação das forças.

Dessa forma, Nietzsche concluiu que o Eterno Retorno só pode ser compreendido como um circulo eterno de manifestação de forças, sem jamais chegar a um momento de repouso, sem jamais chegar a um equilíbrio, mas seus movimentos são de igual grandeza para cada tempo. Assim, todos os instantes da vida retornarão, cada dor, cada alegria, cada tristeza, cada prazer, enfim, todos os momentos.

A partir dessa compreensão, Nietzsche lança a reflexão que se deve fazer diante da perspectiva de se viver o Eterno Retorno, pois diante dele se percebe as forças ativas e reativas que dão origem a moral.

O que Nietzsche nos mostra com o pensar na perspectiva do Eterno Retorno é que cada momento deve ser vivido com toda a intensidade a fim de que esse momento se torne eterno. Amar de tal forma esse momento, desejá-lo de tal forma que o desejo deve querer viver outra vez esse instante. Assim, desejar viver outra vez um momento é afirmar a vida e não desejar viver outra vez o momento é negá-la. Podemos odiar ou amar a vida ao penarmos na sua repetição constante. Imaginá-la repetindo-se pode nos causar horror ou alegria e esses sentimentos vão nos posicionar como fortes ou impotentes diante da vida.

Para muitos tal reflexão é angustiante e inaceitável, porém, ao pensarmos na vida de Nietzsche, perceberemos a estreita relação com sua filosofia. Perdeu o pai cedo, teve uma saúde debilitada e por fim enlouqueceu ainda na maturidade, loucura da qual nunca se recuperou, levando-o ao óbito. Dizem que sua loucura foi resultado de uma DST, outros dizem que foi um problema fisiológico, enquanto outros diziam que foi sua própria filosofia. Mas, o importante não é definir o motivo e sim perceber que Nietzsche amava a vida com todas as sua inquietações, instabilidades e sofrimentos. É dele a frase: “Porque, note-se bem: foi precisamente nos anos da minha mais débil vitalidade que eu cessei de ser pessimista” (Nietzsche, Ecce Homo).

Assim, podemos tirar proveito dessa reflexão de Nietzsche, pensando se de fato amamos nossa vida. A resposta é: somente amamos o que superamos, nunca os traumas. Talvez haja muito para ser resolvido em cada um de nós, a questão é se queremos resolver ou não.


Em Busca de Nós Mesmos



Na Renascença a crença que perdurava era a da existência de um Eu Substancial, ou seja, uma alma dentro de nós desde sempre pronta. Descartes compactuava com essa ideia ao afirmar “penso logo existo”, deixando claro que antes da existência no mundo já existe um Eu que pensa o mundo. A Fenomenologia de Husserl, e principalmente a leitura de Husserl feita por Sartre, mostram uma nova compreensão da interioridade humana, daquilo que chamamos alma. Sartre passou a perceber que “a existência precede a essência”, ou seja, primeiro existimos, depois encontramos quem realmente somos. E o que encontramos? O conjunto de nossas experiências, o sentido particular que damos a própria existência. Não nascemos prontos, nos construímos a cada momento da vida, por isso, se refazer e se reinventar é possível.

O mais importante está no que dizemos a nós mesmos diante das experiências da vida. No sentido que damos a existência compomos um pouco mais de nossa essência. Nos tornamos mais nós mesmos em cada escolha autêntica que fazemos, nas reflexões a cerca dos passos que damos, no rumo que tomamos, no quanto estamos dispostos a conhecer a respeito de nossas reais vontades, desejos, limites, sentimentos. Eis o melhor e muitas vezes ignorado sentido da Psicoterapia Existencialista: o auto-conhecimento. Mais do que desabafar, aliviar uma dor, esvaziar a consciência culpada, encontrar um nome para um sofrimento psíquico ou mesmo aprender a se auto-afirmar. O que propomos de fato é um olhar mais atento para dentro. Não um olhar condenativo, mas um olhar curioso e gentil.

Não podemos escolher sempre as experiências que a vida, muitas vezes, sem nossa permissão, nos faz engolir, mesmo que o gosto amargo da dor seja evidente. Mas podemos dar o sentido que for melhor, mesmo as experiências angustiantes que passamos. O segredo é não se perder de si mesmo, se tornando para os outros algo que você não quer ser, um papel que lhe foi incumbindo. Antes de ser mãe você é mulher, antes de provedor você é homem, antes de trabalhador você é humano, antes de inválido para a sociedade o seu valor está no que você é para você mesmo, antes de estudante você é criança ou adolescente. O mais importante em você não está no pai que você é, na mãe que você é, no estudante, no trabalhador, no professor, mas no homem que você se tornou, na mulher, na criança, enfim, na pessoa que traz consigo as experiências de uma vida. Não ignore o que há de mais precioso, não perca-se de você mesmo nas experiências da vida, mas descubra-se nelas.