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domingo, 11 de setembro de 2011

TRADIÇÃO JUDAICO-CRISTÃ ESCRITA: UM ENSAIO CRÍTICO SOBRE A CANONIZAÇÃO VETERO E NEOTESTAMENTÁRIA

Artigo publicado na Revista Tempos Acadêmicos da UNESC - Volume 1 - Número 4 de 2006.



Ismael Ferreira *

RESUMO:
O artigo apresenta uma discussão bastante atual na teologia, filosofia, filologia, antropologia e outras áreas, sobre a canonização do Antigo e do Novo Testamento, buscando refletir sobre as razões pelas quais se fez a canonização.

PALAVRAS CHAVE
Canonização. Judaísmo. Cristianismo. Bíblia.

ABSTRACT
Jewish-Christian Writtew Tradition: A critical essay canonization on the Old and New Testaments, aimino at reflecting upon the reasons that led to canonization. The zotide pesents an up-to-dste discussion of Theology, Philosophy, Philology, Anthropology and other sciences, on the subject of canonization of the Old and New Testaments.

KEY-WORDS
Canonization. Judaism. Christianism. Bible.

INTRODUÇÃO

A tradição judaico-cristã escrita se constitui de uma infinidade de livros datados desde um período anterior a 1500 a.C., acredita-se que alguns acontecimentos relatados chegam a uma data próxima a 10000 a.C., conforme a tradição escrita constitutiva das religiões judaica e cristã. As tradições se constroem primeiramente numa transmissão oral, de geração à geração, posteriormente numa tradição escrita. Os livros do A.T. foram preservados pelos escribas, que tinham como missão transcrever os textos sagrados para que não se perdessem diante da instabilidade nômade dos judeus. Moisés, segundo as tradições religiosas mais antigas, foi o autor dos 5 (cinco) primeiros livros, chamado pelos judeus de Torá e pelos cristãos de Pentateuco. Não podemos afirmar que Moisés é o autor de todos os textos desses 5 livros, mas a tradição judaico-cristã da a Moisés a autoria dos mesmos. Durante esse período inicial da escrita até cerca de 367 d.C. (data da canonização do Novo Testamento), a tradição religiosa judaico-cristã, no processo histórico da construção de sua cultura elaborou uma quantidade significativa de livros, documentos e textos, que se tornaram a fonte inspiradora da sua religiosidade. O conjunto dos textos que servem de embasamento para duas das principais religiões do mundo (cristianismo, judaísmo), e que influenciaram significativamente ocidente, estão reunidos e organizados num livro que chamamos Bíblia.

BÍBLIA, O TERMO E SUA FORMAÇÃO

O termo vem do Grego bibloV que significa livro, enquanto seu plural biblia significa um conjunto ou coletânea de livros. A Bíblia foi dividida em Antigo e Novo Testamento, sendo que o A.T.1 é composto por 39 livros na versão protestante, tendo 7 livros a mais na versão católica. O N.T.2, se equivale nas duas versões com 27 livros. A delimitação da quantidade de livros que fazem parte da Bíblia vem de uma seleção para escolha de quais livros fariam parta desse conjunto de livros oficializados pelo judaísmo e cristianismo.
A escolha dos livros oficiais foi chamada de canonizar. A palavra, cuja raiz cânon significa padrão, vem do Grego kanon que significa cana ou junco, usado como vara para medir. Dessa forma, cânon significa padrão, ou o que deve ser adotado como certo. Assim, a Bíblia teria os livros adotados como certos na tradição religiosa judaico-cristã, embora o judaísmo use apenas o A.T., enquanto o cristianismo usa o A.T. e o N.T.
Em um período anterior a canonização existia uma quantidade significativa de cópias dos vários textos que hoje fazem parte do conjunto oficial, porém, circulava livremente uma outra quantidade de livros que hoje são considerados apócrifos.

CANONIZAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO, RAZÕES E JUSTIFICATIVAS

A história dos judeus foi marcada por uma forte influência de outras culturas, desde a saída do Egito até o domínio dos judeus pelos romanos. Os lideres políticos e religiosos lutaram para que o povo não se deixa-se seduzir por outras culturas. A história dos judeus narrada pela Bíblia ou por Flávio Josefo1, mostra diversas situações em que os hebreus são influenciados por outras culturas. Ao descer do Monte Sinai, após ter recebido o decálogo, Moisés se depara com a idolatria do povo cultuando um bezerro de ouro. Durante o Excedo2 os hebreus se curvaram e se deixaram influenciar por outras culturas como: egípcia, midianita, persa , babilônica, grega, etc. Demonstrando uma forte tendência ao politeísmo, que na medida do possível era combatida por alguns lideres religiosos fiéis ao monoteísmo, porém, o monoteísmo não era hegemônico. No período monárquico ocorreu o maior abandono da fé judaica, pois a influência vinha dos reis que aderiam as práticas litúrgicas de outros povos. O cativo babilônico só não fez com que os judeus perdessem sua identidade cultural por causa do surgimento das Sinagogas1. A helenização sofrida por todo o mundo antigo sobre o controle de Alexandre Magno também influenciou a cultura e religião judaica, como por exemplo, a primeira tradução do A. T. para a língua Grega feita por aproximadamente 70 judeus, e foi chamada Septuaginta.  Sem contar o fato de o povo judeu ter sido espalhado por todo o mundo. E por fim as influências do império Romano.
Todos esses acontecimentos fizeram com que o povo hebreu produzisse literatura religiosa influenciada por outras culturas e religiões. Assim, para que a cultura e religião judaica não se perdesse se fez necessário dizer quais livros mantinham a essência religiosa judaica, por isso, houve a necessidade da canonização.
A escolha dos livros canônicos do A. T. ocorreu em 70 d. C., época em que Jerusalém e o templo foram destruídos e o povo disperso. A canonização iria fazer com que os judeus continuassem a ser um povo unido “um povo de um livro só”. Bloquearia os diversos pensamentos e literaturas contrárias ao pensamento hegemônico que circulava e influenciava o povo. Segundo McDowell1 (1996) Yohanan bem Zakkai, um dos maiores rabinos dessa época foi o organizador do Concílio de Jâmnia, que proporcionou uma série de debates para que a canonização do A. T. fosse concluída. Os livros considerados apócrifos pelos judeus também foram considerados pelos protestantes e católicos, porém, os católicos reconheceram alguns desses livros como canônicos em 1546 d.C., no Concílio de Trento, num movimento intitulado Contra Reforma.        

CANONIZAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO, RAZÕES E JUSTIFICATIVAS

O textos do N. T. existentes foram escritos em Grego. Não são os originais, são traduções e cópias dos originais, que provavelmente foram escritos em Aramaico. Alexandre Magno desenvolveu uma modalidade da língua grega que foi chamado koine que significa comum, uma espécie de Grego utilizado para ensinar a massa leiga. Essa forma de Grego foi utilizada para escrever o N. T., pois, a divulgação se tornou mais fácil, pois os povos conquistados por Alexandre eram forçados a aprender a língua grega.
O N. T. teve sua canonização em 367 d. C. Antes desse período existiam vários livros e textos cristãos circulando sem significativos problemas para o cristianismo, porém, em um determinado período da história cristã ocorreu a necessidade de escolher quais dos livros se tornariam referencial do pensamento cristão. Dentre as justificativas para a canonização, McDowell (1996) destaca:

“1. O surgimento de um herege chamado Marcião (cerca de 140 d. C.) que desenvolveu seu próprio cânon e começou a divulgá-lo. A igreja precisava contrabalançar essa influência decidindo qual era o verdadeiro cânon do N. T.; 2. Igrejas orientais começaram a empregar nos cultos livros que eram claramente adulterados; 3. O edito do Imperador Romano Diocleciano (367 d. C.) determinando a destruição dos livros sagrados dos cristãos.” (MCDOWELL, 1996)1.


Atanásio de Alexandria foi quem apresentou pela primeira vez o conjunto de livros que hoje compõe o N. T., porém, foram os pensadores católicos Santo Agostinho e São Jerônimo que definiram a canonização. A oficialização do cânon do N. T. ocorreu em 393 d.C. no Concílio de Hipona. Hoje tanto os católicos como os protestantes consideram os 27 livros como canônicos. Os encontrados posteriormente por arqueólogos como: Evangelho de São Tomé, Evangelho de Judas e outros nunca foram aceitos por protestantes e católicos.

CRÍTICA MODERNA

As discussões teológicas pairam sobre a teoria da inerrância bíblica, pois sendo a Bíblia divinamente inspirada, exclui a possibilidade de conter erros, seja na formação, organização ou conteúdo. Thiessen (1997) comenta sobre a teoria da inspiração divina “Creiamos, portanto, confiantemente, que todas as outras dificuldades podem ser resolvidas também, e aceitemos a Bíblia como a Palavra de Deus, verbalmente inspirada” (THISSEN, 1997, p 72)1. Depois de discutir o assunto no segundo capítulo do seu livro Palestras em Teologia Sistemática, Thiessen compreende que a inspiração divina só pode ser possível mediante a fé. Hodge (2001) afirma “Quando nos referimos a Bíblia como de autoridade divina, nos referimos a ela como um volume e reconhecemos todos os escritos que ela contém como dados pela inspiração do Espírito” (HODGE, 2001, p 114)2. Segundo Hodge o fato de a Bíblia ser inspirada por Deus se torna infalível “A infalibilidade e a autoridade divina das Escrituras se deve ao fato de serem a palavra de Deus (...) (HODGE, 2001, p 115)1. McDowell (1997), depois de explanar exaustivamente as questões relacionadas a Bíblia, comentou: “O que foi dito acima não prova que a Bíblia é inspirada por Deus, mas para mim prova que é única” (MCDOWELL, 1996, p 30)2. Seus argumentos favorecem a Bíblia como documento, sua autenticidade e singularidade, porém, não discute questões relacionadas a fé. O problema não é ver autenticidade nos textos bíblicos, e sim em não ver autenticidade nos textos que expressam parte da mesma cultura, considerando-os apócrifos. Apócrifo deve significar: o que não foi adotado como prática de determinada fé. Não devemos atribuir aos livros considerados apócrifos a idéia de serem falsos, pois, cientificamente não encontraremos nenhuma diferença entre os ditos apócrifos e os canônicos.
Quando a discussão fica no campo da inspiração divina, torna-se inadequado qualquer comentário, pois estaremos discutindo a fé, e a fé se coloca a favor da inspiração, sobre a lógica. Acabando os argumentos a fé é posta como resposta favorável à inspiração divina. Nosso estudo não busca questionar os elementos da fé que são utilizados para fortalecer a idéia de que alguns livros são inspirados, infalíveis e fidedignos, enquanto outros são considerados apócrifos, falsos, não atribuindo aos mesmos valor algum. Compreendemos que a canonização respeitou questões políticas, sociais e culturais, porém, se trata da manutenção da hegemonia cultural, política e social. Assim, tentamos provar o valor dos textos não canonizados, que provavelmente expressam o ponto de vista cultural de uma minoria não elitizada. Alguns textos bíblicos são utilizados para reforçar a teoria da inspiração, inerrância e infalibilidade dos livros canonizados: “Toda a escritura é divinamente inspirada por Deus (...) (Paulo, II Timótio 3:19)*; (...) sabendo, primeiramente, isto, que nenhum profecia da Escritura provém de particular elucidação; pois nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo”(Pedro, II Pedro 1: 20,21)*; (...) ninguém pode abolir a Escritura (...) (Jesus, Evangelho de João 10:35)*. Os textos são utilizados para demonstrar que os livros canonizados são inspirados por Deus. Porém, a questão levantada é como os textos bíblicos podem reforçar a idéia da inerrância ou inspiração se os mesmos foram escritos antes da canonização, assim, para quais livros essas afirmações são direcionadas, visto que não existia uma oficialização dos livros? Dessa forma, não sabemos sobre quais livros os autores estavam se referindo. Assim, nem mesmo as citações da Bíblia servem como defesa da inerrância ou inspiração divina dos livros canonizados, pois a canonização foi posterior a defesa, sendo impossível de saber sobre quais livros essas afirmações são direcionadas, a menos que novas descobertas arqueológicas esclareçam estas questões.
Outra questão que merece destaque é a citação que Judas faz sobre o livro de Henoc:
“É também contra esses que profetizou Henoc, o sétimo depois de Adão: Eis que vem o Senhor com seus santos exércitos exercer o julgamento universal e convencer todos os ímpios de todas as suas impiedades criminosas e de todas as palavras insolentes que os pecadores ímpios proferiram contra ele” (Judas v 14, 15)*.

O próprio escritor de um dos livros canonizados utiliza parte de um livro apócrifo com a finalidade de exortar. Se Judas foi inspirado por Deus para escrever sua epístola, sua citação do livro de Henoc não pode ser considerado outra coisas senão a manifestação de que o livro de Henoc também é inspirado. Os teólogos posteriores não poderiam desconsiderar tal citação e excluir este livro, pois, dessa forma, o poder de julgar estava nas mãos de quem escolheu os livros e não de quem escreveu.
Temos também a afirmação de Paulo: “Ah, sim! Eu batizei ainda a família de Estéfanas. Quanto ao resto, não batizei nenhum outro, que eu saiba” (Paulo, I Coríntios, 1:16)*. Como alguém inspirado por Deus não se lembraria de uma situação relevante. Expressando sua subjetividade sem a qualidade divina da onisciência1, resultado de uma inspiração sobrenatural que o qualifica para escrever segundo a vontade de Deus.
Por fim, a reflexão que nos propomos a fazer é sobre a dogmatização doutrinária que exclui e condena culturas e religiosidades não por questões como autenticidade, verdade, correto, mas por questões ideológicas. Pois a única razão para construir determinada religiosidade, sendo sustentada por certos livros é o momento histórico, as crenças e, em última análise, os sujeitos constituídos e produzidos por um meio social que produz neles um padrão. Assim, podemos dizer que a canonização é o resultado subjetivo de um momento histórico.
CONCLUSÃO

Podemos concluir que a rigidez da escolha nos fez refletir sobre as possíveis perdas culturais da exclusão dos livros não canônicos, ou considerados apócrifos, pois, a canonização conservou a religiosidade que, não se perdeu, mas se enrijeceu e se dogmatizou, de tal forma que tudo que não era canônico foi destruído, restando poucos livros e textos, que de alguma forma, fazem parte da mesma cultura e tradição religiosa. 
A diversidade na tradição religiosa, tanto judaica, quanto cristã, sempre existiu, porém, a imposição ideológica das classes dominantes, mesmo se tratando de religiosidade, universaliza conceitos, pondo-os acima de quaisquer outros, obrigando a classe dominada a segui-los. Em última instância, encontramos uma relação de dominação, pois a justificativa de perda de cultura caso não canonizássemos os livros sagrados, mostra uma dominação ideológica, e a manutenção da hegemonia cultural.

REFERENCIAS


Bíblia sagrada. 7 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
CESARÉIA, Eusébio. História Eclesiástica: os primeiros quatro séculos da igreja cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia teologia e Filosofia. 5 ed. São Paulo: Hagnos, 2001.
FOX, Robin Lane. Bíblia: verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: HAGNOS, 2001.
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
MCDOWELL, Josh. Evidências que Exigem um Veredicto: evidências históricas da fé cristã. 2 ed. São Paulo: Editora Candeia, 1996. v I, II.
PALMER, Michael D. Panorama do Pensamento Cristão. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
THIESSEN, Henry Clarence. Palestras em Teologia Sistemática. 4 ed. São Paulo: EBR, 1997.
THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson. 10 ed. São Paulo: VIDA, 1999.

AGRADECIMENTOS

Ao professor e amigo Sérgio Quevedo, pelos longos e importantes diálogos sobre teologia.
A professora Joana Dark, pela orientação.


1 A.T.: Abreviação de Antigo Testamento
2 A.T.: Abreviação de Novo Testamento
2 Êxodo vem do Grego ecVodwV que significa “saída”  ou “partida”, livro que narra a saída do povo hebreu do Egito rumo a terra prometida.
1 Sinagoga: Local fora de Jerusalém onde era possível manter as práticas religiosas do povo judeu.
1 MCDOWELL, Josh. Evidências que Exigem um Veredicto: evidências históricas da fé cristã, 1996.
1 MCDOWELL, Josh. Evidências que Exigem um Veredicto: evidências históricas da fé cristã, 1996
1 THIESSEN, Henry Clarence. Palestras em Teologia Sistemática, 1997.
2 HODGE, Charles. Teologia Sistemática, 2001.

1 HODGE, Charles. Teologia Sistemática, 2001.
2 MCDOWELL, Josh. Evidências que Exigem um Veredicto: evidências históricas da fé cristã, 1996.
* Bíblia Sagrada. 7 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
* Bíblia sagrada. 7 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
* Bíblia sagrada. 7 ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
1 Atributo não moral de Deus, expressando sua capacidade de ser conhecedor de todas as coisas.

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