"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Série Convite ao Divã

Artigos publicados no Jornal do Rincão durante os meses: Outubro, Novembro e Dezembro de 2009.


Ismael Ferreira 

Solidão como Oportunidade

Nem todos nós temos a capacidade de conviver com a solidão da forma como o filósofo alemão Nietzsche convivia. Adorava passar longos momentos sozinho. Uma frase dele nos traz sua compreensão e a importância que dava a solidão: “Não me tires da solidão se não fores me oferecer boa companhia”. A verdade é que estamos na contramão do ditado popular que diz: “antes só que mal acompanhado”. Parece que preferimos uma má companhia à solidão. É verdade que há um lado solitário dentro de todos nós, que hora ou outra se manifesta, mas a solidão constante muitas vezes nos angustia. Mesmo Nietzsche que era apaixonado pela solidão, entendia que seus escritos iriam ser compartilhados no futuro e isso o alimentava.
O grande dilema do mundo moderno é a solidão daqueles que estão acompanhados, ou seja, a solidão não como ausência de companhia, mas como sentimento implacável mesmo quando desfrutamos a companhia de outras pessoas. Os grandes centros demonstram tal tendência: sujeitos rodeados de pessoas, porém, solitários. A tecnologia dá sua contribuição com, por exemplo, a Internet, que conecta as pessoas de todo o mundo e as deixa solitárias nas suas casas, apartamentos e escritórios.
A tendência dos relacionamentos demonstra a dificuldade de querer ver o outro e se deixar ver pelo outro. Preferimos manter sempre uma certa distância nos relacionamentos, pensando assim evitar o sofrimento. A consequência mais imediata é realmente evitar o sofrimento, oriundo de um relacionamento mal sucedido, mas, em longo prazo, a distância que mantemos das pessoas nos leva à solidão.
Todos nós, em algum momento da vida, já experimentamos a sensação de estarmos sozinhos, a sensação de desamparo quando precisamos de apoio, de ter um abraço ao dormir e perceber que abraçamos o travesseiro ou o próprio corpo. A solidão nos persegue nas noites em claro, nos ônibus em que com o olhar perdido na janela, não olhamos para lugar algum, nos passos lentos e cambaleantes que damos com a cabeça inclinada olhando os pés se moverem, na solidão do retorno à casa depois de um dia exaustivo de trabalho, na saudade de alguém que já se foi, no vazio de sentido da vida diante de uma tragédia que arrancou de nós um bem muito precioso.
A solidão está sempre entre um desejo ainda não atingido e a saudade de um momento que já se foi. O desejo ainda não atingido é o que almejamos, nossa busca. Achamos que a realização desse desejo tornará possível a saída da solidão, mas na verdade os desejos realizados são substituídos por outros, num movimento insaciável que nunca se contenta, mas nos projeta para o futuro, nos desconectando do presente e do passado. Assim, nem vivemos o presente, nem recordamos o passado. A saudade do que se foi nos faz experimentar a solidão de querer reviver o que não pode mais ser vivido, pois o tempo já o consumou. Assim, ficamos presos no passado que já não existe.
O segredo está em aceitar a solidão não como algo ruim, mas como possibilidade de conhecer o que quase não conhecemos, nós mesmos. A solidão nos permite olhar para dentro e encontrar boa companhia. Mas, muitas vezes, o que falta é um pouco de amor próprio para atentamente observar tudo em nós que nas relações vemos nos outros e fazemos deles algo fundamental, mas do que nós mesmos. Dessa forma, a solidão não é somente sofrimento, mas oportunidade de encontro com nosso próprio ser.



Quando Não Atingimos Nossas Metas

Inicialmente, cabe uma reflexão sobre a construção das metas as quais perseguimos durante nossas vidas. Vislumbro um primeiro fator fundamental, o outro. Quando digo o outro, refiro-me a um conceito bastante amplo, pois o outro aparece em nossa vida pela primeira vez no momento em que, quando ainda crianças, passamos a perceber que a mãe não é extensão de nosso corpo, mas um outro corpo. Agravasse mais no momento em que a cultura nos diz que devemos amá-la para merecer sua atenção, seu cuidado, seu carinho. Nesse momento a um deslocamento do desejo próprio da criança para a mãe e assim nasce a perspectiva do outro como fundamental para realização pessoal. Agravamento ainda maior ocorre na falta da mãe, pois o deslocamento do desejo não encontra um objeto e desde sedo há frustração.
Obviamente que esse primeiro grande outro se mostra de tal forma e tão imponente que condiciona nosso desejo e expectativa a ele. Levando em consideração que esse outro nunca nos satisfaz inteiramente, que sempre almejamos mais dele do que ele pode nos dar, essa relação está fadada ao fracasso. A mãe não é o único outro em nossa vida, como não é a única mulher na vida de um homem. Mas as expectativas deixadas por essa relação mãe-filho serão perseguidas durante toda a vida. A mãe não é apenas uma mulher dentre tantas, é a expressão cultural do nosso condicionamento para a aceitação do mundo. Em termos mais claros, desde pequenos o mundo nos dá metas a seguir e quase nunca estas metas significam satisfação e felicidade, significam sim, obrigação para com os outros. Obrigação tão enraizada que nos culpamos quando não correspondemos e exigimos dos outros o cumprimento delas, quando nós mesmos estamos por abandoná-las. Obrigação para com os filhos, por mais problemas que possam dar, para com os maridos, para com os patrões, para com o Estado, a Igreja...
Quando adultos passamos a pensar melhor na vida, exatamente por vislumbrar o fato de que ela pode acabar a qualquer momento. E nesse momento percebemos nosso movimento em prol de nossas metas. Tendo cumprido-as ou não, o fato é que começa a parecer absurdo cumprir metas cuja satisfação não é o resultado. Tanto aqueles que atingem suas metas, quanto aqueles que não conseguem atingir, frustram-se consigo mesmos: ou por não atingirem, julgando-se incapazes, ou por atingirem e não encontrarem real satisfação, tendo a sensação de terem se empenhado por nada. Todos se frustram por perceber terem sido enganados num projeto que não refletiram bem tal engajamento que ocupou boa parte de suas vidas.
A primeira coisa a ser pensada num momento em que estamos na contramão de nossas expectativas está numa reflexão aprofundada sobre o sentido de nossa existência. Conforme Nietzsche: “Quem encontra um porque? Encontra um como?” A questão fundamental está na escolha dessas metas: se elas foram feitas com esclarecimento suficiente para saber onde nos levaria, ou foram acontecendo? Quanto maior auto-conhecimento tivermos, mais capacidade de definir nossas metas. Não tão altas que não possam ser atingidas, não tão baixas que não nos desafie. Nossa expectativa também deve ser trabalhada para que caso não venhamos a atingir as metas pretendidas, não nos frustremos de tal forma que nada mais tentemos na vida. Por fim, pessoas que se conhecem melhor, podem até não realizar grandes feitos para o mundo, mas vivem melhor. Basta pesar o mais importante: você ou os outros. Poderíamos dizer em outros termos: você ou suas metas, pois se estiverem em contradição com você, não são suas.



As Emoções


A Psicologia Existencialista compreende que as emoções sempre estão relacionadas com um objeto ou situação. Não há emoção que brota por si mesma de algo interno sem relação com o mundo a nossa volta. Ninguém fica triste sem motivo, pode ser que você não consiga relacionar a sua tristeza com um possível motivo, mas isso não quer dizer que não exista um. Na Psicanálise, por exemplo, quando não sabemos a razão de uma emoção sentida, atribui-se ao que Freud chamou de Inconsciente. O Inconsciente é um “local” em nós que abriga as vivências que não são mais lembradas.
Assim, nos diz a Psicanálise, quando acordamos pela manhã com um aperto no coração e não sabemos o motivo, foi porque num sonho (as vezes nem lembramos mais dele pela manhã) liberou do inconsciente uma emoção e não conseguimos fazer nenhuma conexão com uma situação específica. Essa emoção pode nunca ser compreendida, pois pode estar relacionada com algo vivenciado numa infância muito tenra. Na Psicologia Existencialista nossas emoções estão relacionadas com nossas experiências e, por isso mesmo, devem ser compreendidas a partir das experiências causadoras dessa: alegria, tristeza, amor, ódio, frustração...
Nós, Psicólogos Existencialistas, não trabalhamos com a ideia de um Inconsciente, mas concordamos com o fato de muitas vezes não conseguirmos associar nossa emoção a um fato específico. Porém, o mais importante para a Psicoterapia Existencialista é poder compreender a forma como sentimos nossas emoções e como construímos esse jeito particular de lidar com elas, que cada um de nós desenvolve durante a vida.
Um olhar mais atento sobre nós mesmos, principalmente quando estamos num processo terapêutico, mostra a intensidade das emoções que experimentamos. Não é por nada que para algumas pessoas a tristeza é mais intensa quando está diante de uma separação, enquanto outras ficam mais tristes com ausência de recursos financeiros e outras com a solidão. O motivo de maior ou menor emoção nas diferentes situações está no fato de que naquele momento que experimentamos a emoção como a tristeza pela separação, apesar de ser uma experiência única, ela é experimentada tendo um acumulo de tantos outros momentos de separação que se somam e indicam uma forma própria de lidar com a separação que foi construída ao longo da vida e, por isso mesmo, se sofre mais ou menos, pois depende do quanto essas situações nos afetaram.
Compreender a forma como lidamos com as emoções e como desenvolvemos essa estrutura de personalidade, esse jeito próprio de lidar com as coisas que, vez por outra nos afronta, é o primeiro passo dentro de uma terapia. Agora, conseguir modificar esse jeito de lidar com as emoções por outro que nos faça sofrer menos é o segundo e mais difícil passo. Para tal, deve existir apoio terapêutico para que a pessoa possa arriscar outras e diferentes formas de vivenciar as emoções. A ideia de mudança é o ponto que deve ser discutido, pena que muitas pessoas preferem sofrer da forma que já estão acostumadas do que mudar para uma vida melhor.


Feridas na Alma


A palavra Alma tem sido utilizada para se referir ao que chamamos de mundo interior, ou seja, o conjunto de sentimentos, emoções, vivencias, significações e pensamentos que pertencem a cada indivíduo. Mas nem sempre alma teve esse significado. Já significou, em momentos historicamente distantes, coração, vida, sangue e, em idiomas como hebraico e o grego, o sentido da palavra alma se aproximou do sentido da palavra espírito, que significava sopro de vida, vento, anjos e demônios...

Husserl, filósofo e matemático alemão, mudou a leitura que a Psicologia tinha da alma, pois afirmava a existência de um elo entre a alma e o mundo em sua volta. Husserl chamou esse elo de intencionalidade da consciência. Não nos deteremos aos dados técnicos que aqui nada interessam. Nos deteremos a compreensão de como a alma passou a ser entendida na Psicologia depois de Husserl, principalmente a Psicologia Fenomenológica-Existencialista, para poder entender o processo que ocasiona o que aqui chamamos de feridas na alma.

A partir das reflexões de Husserl, algumas ilusões mantidas pela filosofia idealista e pela religião começaram a ruir, pois a alma não pôde mais ser considerada como existindo desde sempre, contendo em si tudo o que necessita, como se estivesse completamente separada do mundo a sua volta. A primeira grande verdade que aparece é que as coisas com as quais estabelecemos relação nos afetam. Há um canal, pelo qual, fazemos parte do mundo a nossa volta e o mundo passa a fazer parte de nossa interioridade.

Assim, torna-se inevitável que as coisas com as quais estabelecemos relação, ora ou outra, nos afete, nos fira. São as coisas que experimentamos e não fazem bem, as palavras ásperas que ouvimos e nos calamos diante delas, o dia-a-dia dos conflitos inevitáveis dos relacionamentos que nas palavras do poeta encontram o sentido do que almejo expressar: “... como rios secando e as pedras cortando” (Gonzaguinha), referindo-se ao embate entre dois mundos interiores na tentativa de uma relação amorosa que, para poder ser bem sucedida, tem de encontrar a forma mais adequada para que um possa entrar no mundo do outro e deixar que outro entre no seu mundo. Mas, mesmo que a forma mais adequada seja atingida, sempre esbarraremos em farpas. Merleau-ponty, filósofo francês, diz que a relação que estabelecemos com o mundo pode ser comparada ao lábio superior tocando no lábio inferior, deixando um pouco de sua carne e recebendo um pouco da carne do outro lábio. Assim, vivemos deixando um pouco de nossa carne no mundo que resolvemos habitar e colhemos um pouco da carne do mundo habitado. O desafio clínico é encontrar o caminho mais adequado para cada sujeito nas suas relações com o mundo e com os outros.

As relações que experimentamos na vida nos ferem a tal ponto que muitas vezes nos fechamos para toda forma de relacionamento. Preferimos estar no mundo sem contato com os outros, indiferentes. A vida nos golpeia e, por isso, adoecemos.

Algumas pessoas sangram por suas feridas e caminham sangrando e morrendo, outras, conseguem fazer cicatrizarem as feridas, mas continuam ali, e num esforço um pouco maior rompem as cicatrizes e fica evidente que elas ainda estão ali.

Cuidar das feridas que temos não é tarefa fácil, pois teremos que mexer nelas, mas é o mais indicado para a cura.


E se a Vida se repetir Eternamente



O termo Eterno Retorno desenvolvido por Nietzsche, considera a repetição constante da vida uma condição eterna, ou seja, todas as coisas retornam eternamente. Assim, viveremos a mesma vida, com toda a dor e felicidade, eternamente. Tudo o que existiu, existirá outra vez, a história se repetirá, as múltiplas formas de organização da matéria se repetirão, pois as forças são eternamente ativas. A vida, para Nietzsche, se constitui como vontade de potência e são essas energias potencializadas que se repetem eternamente, pois a eternidade é a condição do ciclo da ação das forças.

Dessa forma, Nietzsche concluiu que o Eterno Retorno só pode ser compreendido como um circulo eterno de manifestação de forças, sem jamais chegar a um momento de repouso, sem jamais chegar a um equilíbrio, mas seus movimentos são de igual grandeza para cada tempo. Assim, todos os instantes da vida retornarão, cada dor, cada alegria, cada tristeza, cada prazer, enfim, todos os momentos.

A partir dessa compreensão, Nietzsche lança a reflexão que se deve fazer diante da perspectiva de se viver o Eterno Retorno, pois diante dele se percebe as forças ativas e reativas que dão origem a moral.

O que Nietzsche nos mostra com o pensar na perspectiva do Eterno Retorno é que cada momento deve ser vivido com toda a intensidade a fim de que esse momento se torne eterno. Amar de tal forma esse momento, desejá-lo de tal forma que o desejo deve querer viver outra vez esse instante. Assim, desejar viver outra vez um momento é afirmar a vida e não desejar viver outra vez o momento é negá-la. Podemos odiar ou amar a vida ao penarmos na sua repetição constante. Imaginá-la repetindo-se pode nos causar horror ou alegria e esses sentimentos vão nos posicionar como fortes ou impotentes diante da vida.

Para muitos tal reflexão é angustiante e inaceitável, porém, ao pensarmos na vida de Nietzsche, perceberemos a estreita relação com sua filosofia. Perdeu o pai cedo, teve uma saúde debilitada e por fim enlouqueceu ainda na maturidade, loucura da qual nunca se recuperou, levando-o ao óbito. Dizem que sua loucura foi resultado de uma DST, outros dizem que foi um problema fisiológico, enquanto outros diziam que foi sua própria filosofia. Mas, o importante não é definir o motivo e sim perceber que Nietzsche amava a vida com todas as sua inquietações, instabilidades e sofrimentos. É dele a frase: “Porque, note-se bem: foi precisamente nos anos da minha mais débil vitalidade que eu cessei de ser pessimista” (Nietzsche, Ecce Homo).

Assim, podemos tirar proveito dessa reflexão de Nietzsche, pensando se de fato amamos nossa vida. A resposta é: somente amamos o que superamos, nunca os traumas. Talvez haja muito para ser resolvido em cada um de nós, a questão é se queremos resolver ou não.


Em Busca de Nós Mesmos



Na Renascença a crença que perdurava era a da existência de um Eu Substancial, ou seja, uma alma dentro de nós desde sempre pronta. Descartes compactuava com essa ideia ao afirmar “penso logo existo”, deixando claro que antes da existência no mundo já existe um Eu que pensa o mundo. A Fenomenologia de Husserl, e principalmente a leitura de Husserl feita por Sartre, mostram uma nova compreensão da interioridade humana, daquilo que chamamos alma. Sartre passou a perceber que “a existência precede a essência”, ou seja, primeiro existimos, depois encontramos quem realmente somos. E o que encontramos? O conjunto de nossas experiências, o sentido particular que damos a própria existência. Não nascemos prontos, nos construímos a cada momento da vida, por isso, se refazer e se reinventar é possível.

O mais importante está no que dizemos a nós mesmos diante das experiências da vida. No sentido que damos a existência compomos um pouco mais de nossa essência. Nos tornamos mais nós mesmos em cada escolha autêntica que fazemos, nas reflexões a cerca dos passos que damos, no rumo que tomamos, no quanto estamos dispostos a conhecer a respeito de nossas reais vontades, desejos, limites, sentimentos. Eis o melhor e muitas vezes ignorado sentido da Psicoterapia Existencialista: o auto-conhecimento. Mais do que desabafar, aliviar uma dor, esvaziar a consciência culpada, encontrar um nome para um sofrimento psíquico ou mesmo aprender a se auto-afirmar. O que propomos de fato é um olhar mais atento para dentro. Não um olhar condenativo, mas um olhar curioso e gentil.

Não podemos escolher sempre as experiências que a vida, muitas vezes, sem nossa permissão, nos faz engolir, mesmo que o gosto amargo da dor seja evidente. Mas podemos dar o sentido que for melhor, mesmo as experiências angustiantes que passamos. O segredo é não se perder de si mesmo, se tornando para os outros algo que você não quer ser, um papel que lhe foi incumbindo. Antes de ser mãe você é mulher, antes de provedor você é homem, antes de trabalhador você é humano, antes de inválido para a sociedade o seu valor está no que você é para você mesmo, antes de estudante você é criança ou adolescente. O mais importante em você não está no pai que você é, na mãe que você é, no estudante, no trabalhador, no professor, mas no homem que você se tornou, na mulher, na criança, enfim, na pessoa que traz consigo as experiências de uma vida. Não ignore o que há de mais precioso, não perca-se de você mesmo nas experiências da vida, mas descubra-se nelas.

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