"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

domingo, 11 de setembro de 2011

A Origem das Idéias: o conflito das divergências entre Hume e Descartes

The Origin of ideas: the conflict betweenHume and Descartes





Artigo publicado na revista de Iniciação Científica da UNESC - Criciúma-SC - Volume 3 - 2005.

Ismael Ferreira[1]
Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia

Resumo

O artigo apresenta os pontos de vista de duas correntes filosóficas influenciadoras no pensamento ocidental, o idealismo e o empirismo de Descartes e Hume, mostrando as linhas filosóficas e os pontos divergentes entre as linhas e os filósofos.

Palavras-chace: Idealismo. Empirismo, Idéia, Razão, Conhecimento, Experiência.

Abstract
The article shows the point of view of two philosophical theories which have influenced the occidental thought, the idealism and the empirism of Descartes and Hume, showing the philosophical trends and the divergent points between those trends and the philosophers.

Keywords: Idealism. Empiricism. Idea. Reason. Knowledge. Experience.
Introdução

Desde suas respectivas origens no contexto filosófico, duas significativas correntes filosóficas têm dedicado tempo na tentativa de se sobressaírem. O idealismo, atribuindo à razão o único meio possível de conhecimento seguro, e o empirismo, defendendo a experiência como via mestra capaz de nos levar a um conhecimento seguro. Dentre tantos significativos filósofos, este ensaio sugere um esboço da filosofia idealista de Descartes, e da filosofia empirista de Hume, tendo como foco apontar os pontos antagônicos entre ambos, bem como suas posições filosóficas, concernentes à origem das idéias e o processo mental exercido na sua construção. Devemos esclarecer que, tanto Hume, quanto Descartes, não expressam a totalidade do que o empirismo ou o idealismo representam enquanto correntes filosóficas, mas revelam pontos que diferenciam o empirismo do idealismo.

David Hume


David Hume na sua obra Tratado da Natureza Humana nos leva a uma investigação concernente à construção das idéias mediante a impressão do chamado mundo sensível, “As percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros distintos, que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS” (2001, p. 25). Para Hume, primeiro temos uma impressão, posterior às impressões surgem as idéias, e dessa forma, todas as nossas idéias existem ou passam a existir de forma a posteriori a experiência. Convém lembrar que nessa reflexão, Hume não avalia o mundo, mas a percepção que nossa mente tem do mundo. Pressupondo que nenhuma idéia surge em nossa mente de forma anterior à impressão que nos vem por meio dos sentidos, fazendo-se necessário que a mente perceba os objetos, para construir as idéias desses objetos. Hume entende que somente é possível pensar após a impressão que temos através dos sentidos, portanto alguém que nunca viu algo não pode ter a idéia do que nunca viu, dessa forma, todas as nossas idéias são conseqüências das impressões. Assim Hume, em sua filosofia, deduzira que as idéias surgem mediante a experiência, logo são empíricas.
Tanto as impressões como as idéias são para Hume percepções da mente, sendo conveniente observar ainda uma segunda constatação: não apenas existem impressões e idéias, mas podemos dividir, tanto as impressões como as idéias, em simples e complexas. Simples, sejam impressões ou idéias, são aquelas que não admitem nenhuma separação ou distinção. Um objeto observado causará uma impressão, a impressão que  tivermos desse objeto formará em nossa mente uma idéia desse objeto. Impressões e idéias simples são aquelas que não podem ser divididas. Nossa mente as concebe como são.  Complexas, podem ser divididas em partes. Podemos conceber a idéia da forma, do cheiro e da cor de uma maçã, nossa mente é capaz de pensar separadamente cada uma dessas idéias, assim, idéias complexas admitem separações.
 Segundo Hume as impressões podem ser divididas em sensação e reflexão: a sensação tem origem na alma, uma impressão nos faz ter a sensação de calor ou frio, sede e fome, dor ou prazer. Nossa mente faz uma cópia dessa sensação que continua mesmo depois de a sensação desaparecer, o que  Hume chamou de idéia. Quando essa idéia retorna à alma ocasiona a produção de novas sensações de aversão ou aceitação, esperança ou medo, impressões de reflexão. Cada vez que essas impressões voltam à alma produzem novas impressões e idéias.
As idéias, resultado das impressões são gravadas em duas faculdades, a memória e a imaginação. A diferença entre ambas está na vividez e força da memória em relação à imaginação. Quando tentamos nos lembrar de algo recorrendo à memória, as idéias invadem nossa mente com muito mais força, enquanto a imaginação tem que se esforçar muito para poder manter a percepção por um período determinado de tempo. Porém, tratando-se de tempo, uma memória antiga pode ser menos clara que uma imaginação atual. Através da imaginação podemos construir as mais variadas idéias, uma vez que essa faculdade pode separar idéias e impressões complexas, também pode juntar essas mesmas idéias. Porém, as idéias se relacionam por si mesmas, não sendo a mente o agente do processo. Esse processo torna possível dissolver as impressões, as idéias, reconstruí-las e juntá-las de uma outra forma. Hume diz haver princípios universais que tornam possível separar as impressões e idéias, como também remontá-las de uma outra forma, caso não houvesse, o acaso não daria conta de desenvolver esse papel, pois a forma com que as impressões e idéias se organizam em nossa mente pressupõe um laço que as une, uma qualidade associativa, caso estivessem soltas e desconexas sem um princípio universal, seria ilógico pensar na organização das mesmas.
Nossas idéias são fortalecidas por meio da experiência. Uma idéia é tida como verdadeira, pois é concebida como tal e constantemente fortalecida por experiências que reforçam essa idéia. Nossa mente torna essas idéias crenças inquestionáveis. Quando vemos um objeto cair no chão deduzimos que esse objeto que foi solto e caiu; se virmos todos os objetos conhecidos caírem no chão, deduziremos que todos os objetos quando os soltamos caem no chão. Na proporção que vemos objetos caírem reforçaremos a crença de que os objetos quando largados de nossas mãos caem. Nossa mente construirá uma lei – todos os objetos caem – caso algum dia um objeto que soltarmos ao contrário de cair subir, ficaremos profundamente espantados, pois nossa mente, através da experiência, foi convencida de que os objetos caem. Mas, se uma criança vir um objeto ao contrário de cair, subir, não ficará impressionada, pois sua mente ainda não criou crença alguma a esse respeito, ou criou uma crença ainda fraca. É interessante relembrar que para Hume o que nossa mente capta não é o objeto, e sim a impressão que nossa mente tem desse objeto.
O ceticismo de Hume está em perceber que as coisas em si nada representam, pois o que vale é a impressão que a mente tem das coisas, dessa forma todas as leis formuladas pela mente, sejam de quaisquer natureza, não estão nas coisas, mas na impressão das coisas.
“Quanto às impressões provenientes dos sentidos, sua causa última é, em minha opinião, inteiramente inexplicável pela razão humana, e será para sempre impossível decidir com certeza se elas surgem imediatamente do objeto, se são produzidas pelo poder criativo da mente, ou ainda se derivam do autor de nosso ser” (Hume, 2001, p. 113). Contudo, Hume preferiu dizer ser impossível o conhecimento de uma causa última que, a partir dela, se originem todos os outros processos realizados pela mente humana.

René Descartes


Nas Meditações de Descartes encontramos a fundamentação teórica para o racionalismo idealista. Na tentativa de buscar alicerce seguro para poder de forma certeira apoiar sua filosofia, Descartes inicia as Meditações relatando seus equívocos passados quando sem maiores esclarecimentos aceitou como verdade opiniões equivocadas. Não querendo cometer novamente os mesmos erros, entendeu ser necessário se desvencilhar de todas as certezas que até então concebia como verdadeiras, “irei me dedicar com a máxima seriedade e plena liberdade a demolir em geral todas as minhas antigas opiniões” (Descartes, 1999, p. 249). Desta forma, usou a seguinte reflexão para identificar o erro “o menor índice de dúvida que eu nelas encontrar será suficiente para impelir-me a repelir todas” (Descartes, 1999, p. 250). Descartes busca nas suas antigas concepções o caminho para poder construir fundamentos seguros nos quais poderia desenvolver uma filosofia que tivesse como alicerce a verdade, seguindo seu método, ao menor sinal de dúvida iria repelir tal possibilidade.
Os sentidos tinham sido para Descartes a forma mais certa de se conhecer. Porém, poderiam os sentidos nos enganar? Sim. Se existe o mínimo de desconfiança na percepção da verdade por meio dos sentidos, se existe uma fagulha de dúvida, seguindo sua reflexão, deveria deixar de lado e buscar algo que fosse incapaz de ser um equívoco. Se os sentidos não são confiáveis, como acaba concluindo, supondo que as sensações que nos chegam através dos sentidos são deturpadas por alguma força, ou mesmo a inexistência do mundo sensível, o que pode ser confiável, de que forma poderemos obter um conhecimento seguro? Contudo, Descartes refuta para longe de si todas suas antigas opiniões, por encontrar nelas mínimas sombras de dúvidas, por menor que fossem. Seus questionamentos em relação a tudo o que tinha como verdade fora de tal forma pensado que se incomodara profundamente com tais reflexões. Percebera também a impossibilidade de voltar atrás, uma vez que havia derrubado todas as suas verdades por considerá-las duvidosas em maior ou menor proporção.
Agora, imerso em um ceticismo angustiante, em que nenhuma certeza  existia,  todas as verdades desmoronaram, chega à conclusão que nada de certo existe no mundo, pois de tudo o que existe, de tudo se pode duvidar. É dessa forma que Descartes inicia a segunda meditação, porém diz ele:
“Arquimedes, a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável” (Descartes, 1999, p. 257).
Algo seguro e incontestável, esse é seu objetivo, alcançar um ponto seguro para apoiar sua filosofia. Porém, como achar um ponto seguro quando,  através de suas reflexões, nada fez senão refutar todas as certezas? Se a única certeza que podemos ter é a dúvida, a dúvida se torna a única certeza na qual podemos confiar. Descartes chega a uma conclusão, pode-se duvidar da existência do corpo, da exatidão dos sentidos, da existência de Deus, do mundo, dos outros seres e objetos, porém não se pode duvidar da ação de duvidar, ou seja, não se pode duvidar do fato de estarmos pensando “o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim” (Descartes, 1999, pp. 260-1). A própria existência é confirmada através do pensamento. O que somos? Somos alguma coisa que pensa. O pensamento é a única pedra segura na qual se pode alicerçar  um edifício seguro. Essa reflexão leva a sua mais famosa frase – cogito ergo sum – penso logo existo. Somente por meio da razão se pode chegar a algo confiável.
Foi partindo dessa premissa que Descartes construiu suas reflexões, dando-se conta de ser algo além do próprio pensamento, pois através do pensamento posso me perceber enquanto ser, e definir-me como tal. A imaginação, por exemplo, algo forte, chegando ao ponto de não poder negar sua presença “ainda que possa suceder que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, essa capacidade de imaginar não deixa de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento” (Descartes, 1999, p. 263). Da mesma forma que percebe as coisas que imagina como podendo ser equivocadas, porém a ação de estar imaginando não pode ser negada. A possibilidade de os sentidos serem enganosos, são reais, porém não podemos negar o fato de estarmos sentindo. A existência das coisas externas, como a fidelidade dos sentidos, são provadas quando sentimos, independente de querermos ou não sentir. As sensações que chegam através dos sentidos provam a existência do mundo sensível, pois não pertence a nós a escolha do que sentir, por exemplo: não depende de nós a percepção do calor ou do frio.
Descartes defende a existência de idéias inatas em nós, como o cogito ergo sum, sendo percebido principalmente quando é comentada a existência de Deus. Deus existe para Descartes por existir em nós a idéia de perfeição, quando não somos perfeitos; a idéia de infinito, quando somos finitos, etc. Não poderíamos  ser os autores dessas idéias, uma vez que não existem em nós essas qualidades. Faz-se necessário que alguém tenha colocado essas idéias em nós. Ainda, se não sou o criador de mim mesmo, logo sou criado. Ser criado requer a existência de um criador, da mesma forma que ser imperfeito e finito requer a existência de algo perfeito e infinito.

Conclusão

As divergências filosóficas entre Hume e Descartes apontam para diferenças entre o empirismo e o idealismo. Enquanto para Hume as idéias se originam da impressão que a mente tem dos objetos: “Denomino idéias as pálidas imagens dessas impressões” (2001, p. 25). Sendo que o surgimento das idéias está vinculado a impressão das coisas, assim, nenhuma idéia existe independente da experiência. Em Descartes, diferente de Hume, algumas idéias existem independentemente dos objetos, portanto, são inatas: “Então, é muito certo que essa noção de conhecimento de mim mesmo, assim tomada, não depende em nada das coisas cuja existência ainda me é desconhecida” (1999, p. 261). Descartes afirma que mesmo na ausência dos objetos, ou da percepção que a mente faz dos mesmos, sua existência é confirmada pela existência de idéias independentes da experiência, como, por exemplo, a próprio pensamento: “verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim” (1999, p. 260).
A impressão que os sentidos nos dão irão formar as idéias, segundo Hume: “Denomino idéias  as pálidas imagens dessas impressões” (2001, p. 25). Portanto, os sentidos são o meio pelo qual as impressões chegam até a mente, diferenciando sentir de pensar: “Cada um, por si mesmo, percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar” (2001, p. 25). Sendo que pensar é posterior ao sentir, uma vez que se faz necessária a experiência para a construção das idéias, Descartes, se contrapondo a Hume, entende ser o pensamento um a priori – o cogito – e a partir dele os sentidos se tornam mais fidedignos, pois mesmo podendo negar a existência do objeto, não podemos negar a existência de estar sentindo.
Hume percebe que as idéias se tornam mais firmes e fortes na proporção que se repetem, mostrando e usando como exemplo os ritos da religião católica: “devotos dessa estranha supertição costumam justificar toda aquela pantomima, alegando que esses movimentos, posturas e ações exteriores lhes são benéficos, por revitalizar sua devoção e estimular seu fervor” (2001, p. 130). A crença, conforme Hume, é uma idéia que se fortalece na medida em que se repete a impressão originadora de tal idéia. Descartes, diferente de Hume, entendeu que as idéias  se tornam firmes e fortes porque nossa mente assim as concebe, independente da quantidade de vezes que se repetem: “Concebemos os corpos por intermédio da capacidade de entender que há em nós e não por intermédio da imaginação nem dos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato  de os ver ou de tocá-los, mas apenas por concebê-los por meio do pensamento” (1999, p 268). Assim, o pensamento é que torna a idéia clara e distinta.
Outra diferença fundamental entre os filósofos é a percepção de um a priori. Hume, toma uma postura cética em que a existência de um a priori não pode ser conhecida, negada ou afirmada: “Quanto às impressões provenientes dos sentidos, sua causa última é, em minha opinião, inteiramente inexplicável pela razão humana, e será para sempre impossível decidir com certeza se elas surgem imediatamente do objeto, se são produzidas pelo poder criativo da mente, ou ainda se derivam do autor de nosso ser” (2001, p 113). Descartes, defendendo o teísmo, a existência de um  a priori, o pensamento. Ainda, Deus é confirmado como idéia inata: “seria impossível que minha natureza fosse tal como é, isto é, que eu tivesse em mim a idéia de um Deus, se Deus não existisse de fato” (1999, p 289). Descartes diz ser impossível ter a idéia de Deus em sua mente, se Deus não existisse.

Agradecimentos


Ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia (GEPFilosofia), em especial o professor M. Sc. Sandro Kobol Fornazari pela orientação. Ao professor e amigo Sérgio Quevedo por me mostrar a excelência da Filosofia.
 

Referencias Bibliográficas


1.      ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 1014 p.
2.      DESCARTES, René. Descartes – Vida e Obra: In Coleção: os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 334 p.
3.      DUROZOI, Gérard. ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Campinas: Papirus, 1999. 511 p.
4.      CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2001. v. 2, 945 p.; v. 3, 935 p. 
5.      HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2001. 711 p.


[1] Acadêmico do curso de Psicologia da UNESC, IV Fase. E-mail: ism.ferreira@zipmail.com.br.

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