"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Entre Lágrimas e Risos

O nascimento da comédia grega e suas implicações na política brasileira contemporânea


Artigo publicado no Anexo Ideias do Jornal A Notícia em 31 de Outubro de 2010




Cleuza do S. A. da Silva[1]
Ismael Ferreira[2]

Risos de Demócrito & Lágrimas de Heráclito

Num texto escrito pelo Padre Antônio Vieira, fruto de uma investigação para resolver um problema proposto pelos cardeais da academia romana, no ano de 1674, foi discutido o seguinte argumento: o mundo é mais digno de lágrimas ou de risos, e qual dos dois filósofos foi mais prudente, Heráclito que chorava sempre, ou Demócrito que ria sempre? Para este problema coube ao Padre Antônio Vieira defender Demócrito e seus risos, enquanto o Padre Jerônimo Caetano, também da companhia de Jesus, defendeu Heráclito e suas lágrimas.
Assim, coube, tanto a Antônio Vieira como a Jerônimo Caetano, defender os opostos, sobre os quais se instaurou a problemática. Ambos apresentaram suas conclusões, defendendo as posturas dos filósofos em questão, e argumentado sobre um pano de fundo: o mundo é mais digno de risos ou de lágrimas. Nesse sentido, a proposta deste ensaio é discutir, inicialmente, as conclusões intrigantes e provocantes de Antônio Vieira para, mais tarde, relacioná-las com o nascimento da comédia e da política na Grécia e suas repercussões na modernidade.
Inicialmente, Antônio Vieira classifica as possíveis expressões de choro: choro com lágrimas, choro sem lágrimas e choro com risos. Sendo que chorar com lágrimas é chorar com dor moderada, chorar sem lágrimas é chorar com grande dor, chorar com risos é chorar com dor suma e excessiva.
Assim, compreende Vieira, a dor excessiva faz rir enquanto a dor moderada leva às lágrimas. Parece contraditório, mas a recíproca é verdadeira: a alegria excessiva faz chorar, portanto, a tristeza excessiva, pode fazer rir. “Pois, se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza, por que não será causa do riso?” (VIEIRA, 1679, p p 31, 32. v. XII). Sendo assim, o riso de Demócrito significava ironia do pranto, pois ria ironicamente, sendo seu riso nascido de seu pranto e de uma tristeza.
Os olhos não dão conta de desafogar a alma, por isso, recorre o homem a outros mecanismos, como as mãos. Sendo comum ao chorar, bater as mãos. Ora, se as mãos são utilizadas ao chorar por que a boca não seria? Heráclito chora com os olhos, Demócrito com a boca. Entre risos e lágrimas, cabe uma outra compreensão: Heráclito chorava da miséria humana, Demócrito ria da ignorância. Mas, a ignorância é a expressão da miséria, portanto, ria Demócrito também da miséria humana.
A relação da miséria com a dor é estreita, por isso, foi necessário separar a miséria do que lhe é próprio, a dor. O fizeram com louvor no nascimento da comédia. Tiraram sua base real, pois, na comedia, não se ri da miséria, mas de um faz de conta, de uma ficção que representa a miséria, mas não é diretamente miséria. Na comédia, não se veem miseráveis e suas misérias que, na vida real, provocam tristezas. Mas então o que se vê? Representações, simulações das misérias reais, e, por serem simulações, provocam risos.
Nesse sentido, Heráclito ao chorar torna-se capaz de persuadir mais fortemente, pois lágrimas sensibilizam, enquanto risos provocam zombarias e indiferença. Portanto, Heráclito desperta sentimentos tais como esperança, enquanto Demócrito desperta sentimentos outros como apatia. “Com muito mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e, zombando do juízo dos outros, expunha o seu a zombaria”. (VIEIRA, 1679, p 36).
Diante dessas reflexões, faz o Padre Antônio Vieira uma indagação: “Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo mundo chora e ensina a chorar?” (VIEIRA, 1679, p 37). Qual o lugar do riso, qual reflexão pode ser feita a partir dessa expressão? De que forma o riso pode ser levado a sério? Ao partir da reflexão de que a excessiva alegria leva ao choro, abre-se espaço para compreender como verdade o oposto: a excessiva tristeza leva ao riso. Nesse sentido, diz Vieira: “Aqueles mesmos que mais se riem por fora mais choram por dentro”. (VIEIRA, 1679, p 38). Assim, Demócrito com seu riso demonstra tristeza excessiva, que ultrapassa as lágrimas e o cessar das lágrimas, desembocando no riso.


A Organização da Polis e da Comédia Grega

No século VIII a.C., o comércio faz ressurgir a polis grega terminando com o isolamento das aldeias e oportunizando uma nova forma de organização da vida. O espaço mais cobiçado passa a ser a Ágora (praça pública), local em que todos os homens, cidadãos, discutiam os rumos da vida na cidade. A política nada mais é do que a ação do homem na cidade, portanto, o termo ultrapassa a compreensão obtida na atualidade que entende o termo dentro da ação do homem público frente as demandas da sociedade. A política grega era feita por todos os homens nas suas ações diárias, porém, discutidas somente por homens livres, portadores de títulos de cidadãos.
Nesse momento o caos da mitologia dá lugar à ordem do kosmos (mundo), estabelecido pelo logos (palavra). Portanto, o uso da razão (lógica) é que passou a direcionar a vida grega e não mais a crença em deuses e mitos. Assim, a filosofia se desenvolveu na medida em que se desenvolveu a democracia grega (talvez a filosofia tenha desenvolvido a democracia grega), pois nela o homem pôde se propor a discutir a cidade, a religião, a moral e a vida.
Os homens passaram a discutir os rumos da vida. A partir desse momento os eventos sociais ganharam significativa importância. Os dramas humanos passaram a ter a necessidade de encontrar espaço na cidade, porém, sem o poder dos mitos de outrora. Nesse sentido, tornam-se espetáculos para arte, ganham um lugar específico na vida dos gregos: o anfiteatro. Nele se dramatiza a vida e a vida cessa de ser dramatizada no fim do espetáculo. Cabe na vida a lógica da organização da polis pela palavra (logos). Na arte couberam os devaneios, impulsos, paixões...
Ora, então as lágrimas de Heráclito, ou os risos de Demócrito, escapam o cessar do espetáculo, continuam nas ruas e, por isso, incomodam. A única forma de conviver com tais disposições dá-se na negação da relação com a realidade. Fingir que são expressões perdidas, desvinculadas e desconexas da vida. Somente assim pode-se conviver com tais feridas que não cicatrizam e sangram sem cessar. Nessa reflexão pode-se ver o nascimento da comédia na polis grega, como uma necessidade imposta pela condição humana.
A defesa do Padre Antônio Vieira sobre a superação dos risos de Demócrito em relação às lágrimas de Heráclito mostra o quanto a dramatização voltada para o humor, muitas vezes, supera em dor a dramatização que leva às lágrimas. Portanto, a comédia tornou-se o mecanismo através do qual sentia sua dor com o endurecimento necessário para continuar a vida na polis lógica e racional que, não admite emoções tais como a mitologia admitia.
Nessa perspectiva, a comédia grega é a simulação da dor mais intensa vivenciada na arquibancada do anfiteatro. Rir da organização da polis no anfiteatro é rir numa dosagem mais suportável que Demócrito, pois este ria da própria realidade. Assim, o espaço e o tempo restrito da comédia na polis não permitia o desvanecer dos cidadãos, tal como Demócrito que ria sempre e em todo lugar.
Para o Padre Antônio Vieira, a comédia tirou a miséria da vida real e a transportou para o palco. Ora, a miséria real não deve provocar risos, os homens não podem rir da desgraça humana, tal como ela é, mas podem rir se não for propriamente a desgraça, mas a simulação da desgraça. Nesse sentido, a comédia permite o riso por não se tratar das dimensões reais dos problemas e dramas humanos, mas do personagem que, não necessariamente o sofre. Se não o sofre torna-se permitido rir. Porém, no fundo estamos rindo da mesma desgraça, somente mudamos sua roupagem.


Reflexões sobre Política no Brasil

Segundo Antônio Vieira, os risos de Demócrito denunciam a falta de perspectiva que temos com as soluções propostas pelos lideres políticos. Rir significa perder a esperança, não acreditar na mudança. Nesse sentido, a inserção, desde a Grécia Antiga, do riso desmedido e escancarado de Demócrito denuncia a impossibilidade de ver uma perspectiva solucionadora para a vida social. Tal riso invade primeiramente a própria vida na polis por Demócrito, mas encontra seu apogeu no teatro grego. O próprio Aristóteles dedica uma obra para discorrer sobre a Comédia, depois de mostrar a catarse da tragédia. O livro é anunciado pelo próprio Aristóteles ao discorrer de forma inicial e superficial sobre a tragédia, porém, não se sabe da conclusão e nem do paradeiro do mesmo. O filme O nome da Rosa do diretor Jean Jacques Annaud, baseado no livro de Umberto Eco se propõe a discutir a existência do texto de Aristóteles.
Voltando a questão proposta para Antônio Vieira e Jerônimo Caetano, podemos adaptá-la ao contexto vigente, especificamente ao processo eleitoral brasileiro de 2010. A questão persiste: “O mundo é mais digno de lágrimas ou de risos?” Contextualizando-a: “A política brasileira é mais digna de lágrimas ou de risos?”
Se remetermos as duas últimas décadas da história política do país ao anfiteatro grego, teríamos que tipo de dramaturgia: tragédia ou comédia? Entendendo que somente na arte podemos nos dar ao choro ou riso, o anfiteatro torna-se o local único para experimentarmos e expressarmos tais emoções, apesar de que aqui não passa de um simulacro.
Nós brasileiros diante desse “espetáculo” político contemporâneo seriamos tomados por um choro emocionado que expressa a felicidade diante de práticas com as quais nos identificamos e nos sentimos amparados em nossas misérias sociais? Ou o choro denunciaria a infelicidade decorrente de uma política omissa e corrupta, cuja reação expressa um sentimento consciente de revolta que ainda nos arrasta à ação? Ou ainda riríamos debilmente, como consequência de um processo alienatório que nos castra a percepção real dos acontecimentos e nos priva da ação? Ou então o riso seria nosso último recurso que denuncia a total impotência humana frente aos acontecimentos políticos, diante dos quais cabe como única expressão o riso, como dor mais profunda. O qual muitas vezes é causa e consequência da comédia realizada pelos próprios candidatos em suas campanhas, expressando que até eles mesmos tem na essência dos seus discursos o mesmo riso de descrédito de Demócrito.
Nesse sentido, o riso nos leva a uma omissão irônica, onde a prática se restringe ao deboche e não a mudança concreta. Por outro lado, o choro nos traz a consciência e a esperança que nos remete a mudança. Portanto, choremos a política brasileira, certos de que nosso choro nos trará a consciência necessária para mudarmos o curso do nosso país. 
Estamos mais perto dos risos de Demócrito ou do choro de Heráclito? Quando um comediante é eleito com votação recorde o que podemos esperar, o que podemos concluir? Tiririca nos faz rir e nosso riso custará nossa esperança. Ele escapa do palco para a vida, para a polis moderna e sobre ele lançamos nossa dor mais profunda, nosso riso, que é no fundo, conforme o Padre Antônio Vieira, chorar com a boca. Pois, se podemos chorar de felicidade, podemos também rir de tristeza. 



[1] Professora de Geografia do Ensino Médio da EDUTEC-SATC
[2] Psicólogo Clínico e Social

Nenhum comentário:

Postar um comentário